“Um aventureiro imóvel”: resenha na Revista Humanitas 163 (maio 2023)

Um livro recém-lançado sobre o escritor e filósofo romeno Emil Cioran apresenta valioso aporte crítico-hermenêutico em relação à sua vida e obra. Trata-se de leitura indicada para pesquisadores acadêmicos, mas não só

Rodrigo Inácio R. Sá Menezes

Cioran, um aventureiro imóvel (Átopos Editorial, 2023, trad. do romeno de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes) reúne entrevistas sobre o autor romeno de expressão francesa. São intercâmbios reúne 30 filosóficos e literários mantidos por Ciprian Vălcan no melhor espírito cosmopolita. Há 30 vozes, ora consonantes, ora dissonantes, 30 logoi que giram em torno de um interesse (e uma paixão) em comum: o filósofo, o pensador, o escritor, o caso, o enigma, o paradoxo ambulante, o compatriota expatriado, o ilustre estrangeiro, o amigo, o homem de carne e osso que nasceu em Răşinari, em 1911, e faleceu em Paris, em 1995.

Trata-se de um valioso aporte crítico-hermenêutico sobre a vida e a obra de Cioran, uma leitura indicada tanto para o pesquisador acadêmico como para o leitor sem nenhuma formação filosófica. Os 30 pontos de vista compilados aqui são iluminadores em si mesmos e pela constelação hermenêutica que formam em conjunto, confirmando a observação de Marta Petreu (uma das entrevistadas) de que “os grandes autores guardam uma riqueza escondida que só a complementaridade das interpretações traz à luz”.

Polifonia “cioranesca”

Marta Petreu, biógrafa de Cioran, resume bem a que se propõe o livro de Ciprian Vălcan: dar uma visão geral, por aproximações e variações de perspectiva, uma espécie de “retrato falado”, esboçado polifonicamente por um coro de 30 vozes, do autor de livros como Nos cumes do desespero, Breviário de decomposição e Silogismos da amargura.

Vălcan recolhe impressões, insights, memórias, anedotas, críticas e interpretações as mais variadas. Como um detetive cioranesco, formula um punhado de perguntas-chave e justapõe uma série de depoimentos que engendram uma imagem paradoxal, o perfil de um autor sem um perfil definido, a identidade de um homem sem identidade, “um estrangeiro para a polícia, para Deus, para mim mesmo”.

Querela das interpretações

Como Nietzsche, Cioran é um pensador de muitas peles – ou muitas “máscaras” (tantas quanto exigem as suas solidões). “Nietzsche é uma soma de atitudes, e é rebaixá-lo procurar nele uma vontade de ordem, uma preocupação de unidade”, escreve o autor romeno, fazendo uma autoconfissão indireta – por uma espécie de détour em Nietzsche.

Essa natureza fragmentária e polifônica, proteiforme e insólita, titânica e temerária nos coloca um tremendo desafio hermenêutico. Aqui nos deparamos com a questão das condições de possibilidade e dos limites da interpretação de uma obra que parece admitir todas as interpretações e, ao mesmo, rejeitá-las uma a uma. Há algo de não interpretável na obra de Cioran, assim como na de Nietzsche: uma singularidade irredutível, indefinível, derivada da relação entre temperamento e estilo.

A pluralidade de perspectivas suscitadas por um mesmo autor, uma mesma obra, poderia ter como o seu corolário: dois leitores de Cioran, três interpretações da sua obra. Nesse sentido, a polifonia das interpretações é um reflexo da polifonia discursiva da própria obra em questão, sumamente fragmentária, como uma “escritura do desastre” (Blanchot), sincopada e assistemática, como a existência mesma.

A pluralidade de perspectivas suscitadas por um mesmo autor, uma mesma obra, poderia ter como o seu corolário: dois leitores de Cioran, três interpretações da sua obra. Nesse sentido, a polifonia das interpretações é um reflexo da polifonia discursiva da própria obra em questão, sumamente fragmentária, como uma “escritura do desastre” (Blanchot), sincopada e assistemática, como a existência mesma

Cioran anota nos seus Cahiers: “Sobre todas as coisas, eu tenho pelo menos dois pontos de vista divergentes. De onde a minha indecisão teórica e prática.” Essa “indecisão”, contagiante, não falha em manifestar-se na exegese cioraniana. Como sustentar uma interpretação simples, única e definitiva, de um pensador que não tinha um ponto de vista simples, único e definitivo sobre nada?

Caleidoscópio

Os entrevistados de Ciprian Vălcan são intelectuais dos mais diversos backgrounds, como se diz em inglês, personalidades São biógrafos, tradutores, editores, professoras universitárias e pesquisadores das mais variadas especializações, escritores, poetas, amigos ou leitoras que se corresponderam com Cioran, e que tiveram, eventualmente, o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, na sua mítica mansarda na Rue L’Odéon, 21, em Paris.

São biógrafos, tradutores, editores, professoras universitárias e pesquisadores das mais variadas especializações, escritores, poetas, amigos ou leitoras que se corresponderam com Cioran, e que tiveram, eventualmente, o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, na sua mítica mansarda na Rue L’Odéon, 21, em Paris.

Cioran, um aventureiro imóvel dá a conhecer uma ampla e heterogênea rede internacional de “cioranólogos” e “cioranólogas” (para empregar um termo de Marta Petreu). São intelectuais de países como França (6), Romênia (4), Itália (4), Brasil (4), Hungria (1), Espanha (1), Portugal (1), Holanda (1), Grécia (1), Colômbia (1), Tunísia (1), Israel (1), Canadá (1) e Polônia (1).

Esta edição de Cioran, um aventurier nemişcat, pela primeira vez em língua portuguesa, vem com notas de rodapé elucidativas, sempre que necessárias a título de contextualização (sobretudo de personalidades da cultura romena e de certos termos da língua romena), além de notas com as referências completas de aforismos e passagens da obra de Cioran citados pelos 30 entrevistados. Ao final, o leitor encontrará uma cronologia da vida de Cioran, seguida de um índice bibliográfico.

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