Cioran, entre psicanálise e filosofia: um caso sério

Prefácio ao livro de Giovanni Rotiroti: Cioran entre psicanálise e filosofia. Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. São Paulo: Átopos Editorial, 2023.

Um caso sério

Rodrigo Inácio R. Sá Menezes

“Todo escritor dirá então: louco não posso, são não me digno, neurótico sou.”

R. BARTHES, O prazer do texto

“Da Ilíada à psicopatologia…”

A aversão de Emil Cioran por Freud e a psicanálise em geral é sintomática de um autor cuja obra se oferece como um “prato cheio” para leituras psicanalíticas ou simplesmente psicológicas.[1] “A psicologia é o túmulo do herói”,[2] lê-se no Breviário de decomposição, uma sentença que tem valor de autodiagnóstico. “Os milhares de anos de religião e raciocínio debilitaram os músculos, a decisão e o impulso aventureiro”, escreve esse “aventureiro imóvel”,[3] proponente da “única forma de heroísmo compatível com a cama”: a insônia.[4] E conclui: “A abstração insinuou-se na vida e na morte; os ‘complexos’ apoderam-se de grandes e pequenos. Da Ilíada à psicopatologia: este é todo o caminho do homem”.[5]

Este livro, especialmente editado para o público de língua portuguesa, é um ensaio hermenêutico transdisciplinar, na intersecção entre psicanálise e filosofia, sobre o caso de consciência que se revela na obra do autor romeno de expressão francesa. São, mais precisamente, três ensaios que se complementam e configuram um plexo temático: trata-se da relação vida-obra de Cioran de um ponto de vista psicanalítico, em diálogo com a filosofia e outras áreas do saber (antropologia, teologia, literatura).

O primeiro (e mais longo) ensaio se divide em quatro capítulos cujos títulos são emblemáticos do psiquismo trágico (e místico) de Cioran: “A revelação da dor”, “A tentação do suicídio”, “Tempo e eternidade” e “Tédio profundo”. O segundo analisa o impacto sobre o jovem estudante romeno, na década de 1930, d’O mal-estar na civilização de Freud. Rotiroti identifica ecos da “pulsão de morte” (Todestrieb) freudiana na noção de “morte imanente à vida” tematizada em Nos cumes do desespero (1934), o que faz do pensamento cioraniano um “mortalismo” antes que um vitalismo. O terceiro ensaio, por fim, de cunho mais biográfico, aborda a amizade inaudita entre Cioran e Benjamin Fondane (1898-1944), iniciada em uma Paris ocupada pelas forças nazistas, na década de 1940, e tragicamente interrompida pela morte do poeta em Auschwitz, em 2 de outubro de 1944. Segundo Rotiroti, a influência de Fondane sobre Cioran, 12 anos mais novo, teria servido de contraponto à nefasta influência do professor Nae Ionescu, da Universidade de Bucareste, ao longo da década de 1930.

Giovanni Rotiroti pretende auscultar (ascoltare) Cioran através dos seus escritos (romenos e franceses, incluindo os Cahiers e a correspondência epistolar). Podemos aproximar a sua abordagem do intuicionismo de Bergson, que “se propõe apegar-se o mais possível ao original mesmo, aprofundar-lhe a vida e, por uma espécie de auscultação espiritual, sentir palpitar sua alma.”[6] Uma virtude que Rotiroti tem de sobra é a paciência para acompanhar a duração vital do seu “objeto de análise”, o desenvolvimento, a maturação do pensamento de Cioran, sem incorrer em conclusões precipitadas, baseadas em fontes alheias à sua própria auscultação psicanalítica. A intuição direta tem prioridade sobre o conceito (neste caso, os rótulos), pois “os conceitos simples não possuem, pois, somente o inconveniente de dividir a realidade concreta do objeto em outras tantas expressões simbólicas, eles dividem também a filosofia em escolas distintas, das quais cada uma conserva o seu lugar, escolhe seus jogadores e inicia uma partida que não findará jamais.”[7]

Intuitivamente, Rotiroti se mantém além ou aquém da divisão de escolas e doutrinas apontada por Bergson, cada qual com seus doutos pré-conceitos. Não lhe interessa entrar na querela pelo veredito final acerca de Cioran, uma disputa verbal que é, no fundo, mais ideológica do que qualquer outra coisa.[8] O filósofo-psicanalista explora a polissemia do substantivo domanda e do verbo domandare, empregando-os nos sentidos de “pergunta/perguntar” e de “pedido/pedir” – como em domanda d’amore. Que problemas tiravam o sono de Cioran?[9] Quais eram as causas do seu descontentamento[10]? Imerso em ruminações insolúveis, o que esperava ele do mundo, da vida e da morte, de Deus, do Nada, de si mesmo? A medida da sua obra é proporcional à opacidade desse desiderato, à natureza insondável (pois abismal) daquilo que Cioran mais desejou (e ao mesmo tempo repeliu, desconfiado): alguma forma de salvação ou redenção (Erlösung, como no título de Philipp Mainländer, A Filosofia da Redenção). Esse obscuro objeto do desejo (Buñuel) incorpora a condição paradoxal ilustrada por das Unheimliche, na acepção freudiana: é o estranho-familiar.[11]

Longe de Rotiroti a “psicanálise selvagem”. Não se trata de lançar mão de um sem-número de teorias e conceitos psicanalíticos, apenas para comprovar circularmente a sua validade. A leitora não encontrará interpretações pautadas em ideias freudianas vulgarizadas, como o “complexo de Édipo”. Tampouco se trata de deduzir o (controverso) ateísmo de Cioran a partir de uma relação supostamente problemática com o pai, que era um sacerdote cristão (assim como o pai de Nietzsche).[12] Evitando esses e outros lugares-comuns, o exegeta italiano se põe à escuta dos atos de fala, registrando variáveis subjetivas como o desejo, a culpa, o medo, o prazer e a dor, o gozo (ou êxtase) e o desespero, o conflito entre Eros e Tanatos, sem pretensão de fazer diagnósticos ou de emitir um juízo conclusivo sobre o caso de consciência em questão. Trata-se, pois, de uma leitura-auscultação da obra cioraniana como corpus sintomático de um certo psiquismo (tempestuoso, trágico), de uma certa experiência vital e espiritual (traumática desde o nascimento[13]).

Cioran nasceu no exílio: um romeno “transplantado” na periferia do Império Austro-Húngaro. Patrice Bollon destaca o longo e árduo caminho percorrido por ele, vindo do mundo rural e pré-moderno da Transilvânia, onde nasceu, até a consagração literária no centro mundial das Luzes, os pré-conceitos atávicos que precisou desconstruir incansavelmente para conquistar a sua proclamada lucidez. O “inconveniente de ter nascido”, na percepção de Cioran, é inseparável do inconveniente de ser romeno… “O valor profundo de sua filosofia”, conclui Bollon, “reside no caminho que o conduziu das trevas mais espessas à luz”, apanágio da lucidez.[14]

Giovanni Rotiroti nos conduz pelos labirintos da psique de Cioran, mostrando como este e outros dados biográficos são cruciais para compreendermos a gênese da sua obra, os móveis profundos que a animam, e particularmente os “cumes do desespero” de sua juventude, o extremismo desesperado e febril que marcou os seus anos universitários – o legionarismo exaltado passionalmente e posteriormente renegado com igual veemência.[15] Rotiroti nos mostra como a negatividade constitutiva da obra de Cioran – notadamente em sua fase francesa, o “segundo” Cioran – é proporcional à problematicidade inerente à sua experiência de vida, desde o nascimento – já no exílio, alienado da sua identidade romena ancestral. O seu ensaio tem o mérito de lançar luzes compreensivas sobre o caso de má consciência que se manifesta na escrita-confissão de Cioran, marcada pela obsessão do fracasso, da perda, do Nada, pelo luto e sem objeto, melancolia, ansiedade, remorso…[16] Mas também por uma notável agudeza de espírito, uma capacidade de autocrítica brutal (“pensar contra si próprio”). Numa palavra: lucidez. Uma lucidez demolidora: “Somos todos perseguidos por nossas origens; o sentimento que me inspiram as minhas se traduz necessariamente em termos negativos, na linguagem da autopunição, da humilhação assumida e proclamada, do consentimento ao desastre”.[17]

Freud, a psicanálise e o “caso” Cioran

“Não fica bem”, me dizia você, “praguejar o tempo todo contra a ordem das coisas.” “É culpa minha se sou apenas um novo rico da neurose, um Jó em busca de uma lepra, um Buda de pacotilha, um Cita indolente e extraviado?”

CIORAN, Silogismos da amargura

O próprio Cioran se reconhecia um “caso”, au sens quasi clinique du terme [no sentido quase clínico do termo], a exemplo dos autores com os quais se identificava: Dostoievski, Nietzsche, Kierkegaard, Baudelaire, Leopardi… “Tanto em filosofia como em literatura, me interessam todos os que vão em direção à catástrofe, e igualmente os que chegam a situar-se mais além da catástrofe. A minha grande admiração é por quem esteve a ponto de desabar”, declarou Cioran a Fernando Savater, na década de 1970.[18]

No Breviário de decomposição, Kierkegaard e Nietzsche são evocados como “casos” paradigmáticos. Cioran se identifica com eles na qualidade de pensadores “orgânicos”, “despreocupados de sua época, extraindo seus pensamentos de seu próprio fundo, da eternidade específica de suas taras”, “apaixonados por sua fatalidade, evocam irrupções, fulgores trágicos e solitários, próximos do apocalipse e da psiquiatria.”[19] Suas “verdades de temperamento” são a expressão dos seus apocalipses interiores, que nenhuma contingência externa poderia perturbar. São casos de consciência trágica (dilacerada, “enferma”), pensadores para os quais pensar é padecer o espinho ou o “punhal” enterrado na carne.[20]

A figura do “caso clínico” é evocada no primeiro dos Silogismos da amargura: “Formados na escola dos veleidosos, idólatras do fragmento e do estigma, pertencemos a um tempo clínico em que só importam os casos. Só nos interessa o que um escritor calou, o que poderia ter dito, suas profundidades mudas. Se deixa uma obra, se explica, assegura nosso esquecimento.”[21] Caracterizando o século 20 como um “tempo clínico”, Cioran se insere nesse mesmo tempo e reconhece, tacitamente, o triunfo psicanalítico de Freud. Em outro “silogismo”, Cioran nos dá a sua receita da perenidade literária:

Se Nietzsche, Proust, Baudelaire ou Rimbaud sobrevivem às flutuações da moda, devem isso à gratuidade de sua crueldade, à sua cirurgia demoníaca, à generosidade de seu fel. O que faz durar uma obra, o que a impede de envelhecer é sua ferocidade. Afirmação gratuita? Considere o prestígio do Evangelho, livro agressivo, livro venenoso entre todos.[22]

Se é para ler este aforismo de forma especular, como uma autoimagem que Cioran projeta nos outros, então a sua obra é “venenosa” – como a de Nietzsche, ou o Evangelho. Cada aforismo é um “veneno abstrato”, formulado por razões “terapêuticas”. São pharmaka, na ambivalência do termo grego: “remédio” e “veneno” ao mesmo tempo.[23] A obra de Cioran não pretende ser “edificante”, “não busca nem a persuasão, nem a doutrinação, nem a transmissão de nenhum conhecimento positivo: a sua única tarefa, se podemos chamá-la assim, é o desengaño”, como observou justamente Fernando Savater.[24]

Cioran precisava escrever para suportar a vida e suportar-se a si mesmo, para passar de um dia ao outro, para aplacar em si a magia do suicídio… “Um livro é um suicídio adiado”,[25] e “nem sempre estou triste, logo não penso sempre”, lê-se em seus livros franceses.[26] Assim, se é verdade que o insone de Răşinari escreveu em demasia (como ele mesmo lamentou em certas entrevistas), traindo  reiteradamente, a cada novo livro, a promessa de que aquele seria o último, é porque estava triste (quase) sempre. Porque “a tumba é a única farmácia da melancolia.”[27] O fragmentarismo discursivo de Cioran é indicativo do capital de melancolia que ele carregava em si.

“O prior da Ordem da Santa Louca Temeridade”

Nietzsche é uma referência-chave em matéria de “casos clínicos”. Segundo Peter Sloterdijk, Cioran se sobressai no gênero temerário que o filósofo alemão teria praticamente inaugurado com Ecce homo: a autobiografia filosófica.[28] A partir daí, a autobiografia tende a se tornar “autopatografia”: gênero literário impudico que consiste em tornar público o seu “dossiê de doenças”,[29] rompendo com “todas as normas de discrição e de tato – para não mencionar o pathos de distância”.[30] Cioran se sobressai nessa confissão-exibição “autopatográfica”, de tal modo que Sloterdijk o elege para o posto de “prior da Ordem da Santa Temeridade”[31] imaginada por Nietzsche em Genealogia da moral. O que os escritos de Cioran comunicam, o que eles nos mostram, é a sua ferida ontológica, os seus abismos íntimos.

“Sobre todas as coisas, tenho pelo menos dois pontos de vista divergentes. De onde a minha indecisão teórica e prática”,[32] lê-se em meio às mais de mil páginas dos Cahiers de Cioran, publicados postumamente. Essa ambivalência não deixa de valer relativamente à psicanálise. Não devemos interpretar a aversão do autor romeno por Freud de maneira inequívoca. Ele mesmo nos faz suspeitar dela, nos leva a interpretá-la como o sintoma de um complexo que se funda na tensão entre atração e repulsa, identificação e oposição. Quando Ciprian Vălcan perguntou a Roland Jaccard quais autores do século 20 poderiam ser comparados a Cioran, ele respondeu: “Thomas Bernhard e, paradoxalmente, Sigmund Freud”.[33] Não podemos afirmar que Jaccard estivesse errado. Ele – que era amigo de Cioran – tinha as suas razões para pensar assim.

Contemporâneo de um “tempo clínico”, Cioran estava, querendo ou não, contaminado pelo fenômeno da psicanálise. Se desdenhava dela, preferindo, em seu lugar, as explicações teológicas ou então as biológicas,[34] talvez fosse por uma reação de autodefesa, para proteger e manter intactas as suas obsessões (matéria-prima da sua criação), para preservar o “frescor das suas neuroses”.[35] É a voz da loucura que se ouve? Seria esquecer a sentença de Roland Barthes: “Louco não posso, são não me digno; neurótico sou.”[36] Ou a observação espirituosa de Chesterton: “Louco não é o homem que perdeu a razão. Louco é o homem que perdeu tudo menos a razão.” A ironia em Cioran é o duplo da melancolia. O que se percebe como “loucura” faz parte do seu ser-irônico-melancólico. Poder-se-ia dizer a seu respeito o mesmo que Kierkegaard em relação à figura do Taugenichts (“imprestável”[37]) do ponto de vista romântico: “aquilo de que os cristãos, especialmente em tempos agitados, falam tão frequentemente, do tornar-se um louco aos olhos do mundo, o irônico já realizou à sua maneira, só que ele não está buscando o martírio, pois para ele aquilo é o gozo poético supremo.”[38]

Psicologia negativa: uma “louca” lucidez

É forçoso reconhecer o aspecto insano, insólito, da lucidez descrita por Cioran: uma “louca” lucidez[39] que vê o mundo alla rovescia (“de cabeça para baixo”), em negativo, o mundo como um “Não-lugar universal”.[40] Devemos incluir a obra de Cioran entre essas “grandes obras sombrias da literatura e da arte”[41] de que fala Blanchot, evocando Goya, Sade, Hölderlin, Nietzsche, Nerval, Van Gogh e Artaud? Nelas escutamos a linguagem da desrazão, e “essas existências nos fascinam pela atração que sentiram, mais também pela relação que cada uma parece ter mantido entre o saber obscuro da Desrazão e aquilo que o saber claro – o da ciência – chama de loucura.”[42] Cioran não é alheio a esse “saber obscuro da Desrazão” que Blanchot contrapõe ao “saber claro da ciência” – e que esta acusa como “loucura”. No seu primeiro livro, Nos cumes do desespero (1934), que contém virtualmente tudo o que ele escreveu depois, lemos esta descrição do “Êxtase”, ou seja, do “conhecimento extático”:

O verdadeiro êxtase é perigoso. Ele se assemelha à última fase de iniciação aos mistérios egípcios, em que, em vez do conhecimento explícito e definitivo, dizia-se: “Osíris é uma divindade negra”, ou seja, o absoluto permanece incognoscível em si. Não vejo no êxtase das raízes últimas da existência outra coisa senão uma forma de loucura, não de conhecimento.[43]

A lucidez descrita por Cioran é o estado de aridez do espírito que se sucede a esse momento de suprema loucura, quando se dissipam as brumas do êxtase.[44] Ela comporta o recordo da experiência extática, da visão reveladora, mas o que se vê, o que o êxtase revela, não é plenitude, harmonia, perfeição divina, um absoluto redentor, nada além de um “demonismo vital”[45] sempre ativo nas “raízes últimas da existência”. Retornando ao tema do êxtase no Livro das ilusões (1936), publicado dois anos depois, ele afirma que “os últimos dados só podem provocar em nós perturbação, uma perturbação divina e diabólica. E dela nasce um sorriso cósmico que substitui o sorriso franco; os olhos se aproximam das ordens invisíveis ou as pálpebras se fecham para escondê-las; os sentimentos se abrem para mistérios que os pensamentos recobrem de evidências.”[46]

Cioran psicologiza Nietzsche quando afirma que ele teria inaugurado a “era doscomplexos’”, que, “expondo suas histerias, nos desembaraçou do pudor das nossas”,[47] e que “devemos o diagnóstico de nosso mal a um insensato, mais marcado, mais atingido do que nós, a um maníaco confesso, precursor e modelo de nossos delírios”.[48] Na sua visão, Nietzsche é o “louco” perfeito (no melhor sentido do termo), um “doente” exemplar, caso-limite do espírito e da fisiologia, protótipo do nosso titanismo e do nosso quixotismo. Vendo em Nietzsche um sublime modelo de temeridade e patetismo, Cioran pretende ir além dele no quesito “autopatografia”. “Eu creio que a filosofia já não é possível senão como fragmento, na forma de explosão”, diz ele a Fernando Savater. E atribui a Nietzsche o mérito de ter “sabotado o estilo da filosofia acadêmica”, de ter “atentado contra a ideia de sistema. Ele foi libertador porque depois dele, pode-se dizer tudo…”[49]

As implicações éticas e políticas desse despudor de “poder dizer tudo” têm sido debatidas. Está implicado um conjunto de questões que remetem, de uma maneira ou de outra, ao conceito de niilismo, na sua paradoxal polissemia, indeterminação, negatividade. Há críticos que repreendem Cioran como “irresponsável”, “inconsequente”, um autor “perigoso” e desaconselhável (sobretudo para os jovens), e há leitores – como Peter Sloterdijk e Giovanni Rotiroti – que pensam diferente, que não veem razão para “cancelá-lo”, muito pelo contrário. Richard Rorty, o grande filósofo pragmatista, diria que até a inutilidade preconizada por Cioran tem a sua utilidade; é útil como um exemplar de singularidade, como caso de consciência, como ilustração de um modo ou estilo de vida, em toda a sua tragicidade, problematicidade e imperfeição.[50] Temos muito a ganhar frequentando as obras “autopatográficas” de pensadores como Nietzsche e Cioran. Através deles fala a doença e a convalescença, o delírio e a lucidez, o sofrimento e a dureza, enfim, a negatividade trágica inerente à existência.[51] Tudo o que a cultura contemporânea, tecnocrática, hedonista, obcecada pela positividade e pela eficácia, escamoteia sistematicamente. São obras de demolição que têm o efeito de desestabilizar, de minar as certezas – as ilusões ou mentiras vitais.

As descrições que Cioran faz de Nietzsche (e outros) são representativas da maneira como ele vê a si mesmo. É como se o escritor romeno precisasse mostrar que há outros casos como o dele: incuráveis, irredutíveis, cativos de seus temperamentos e das síncopes de sua saúde. Cioran exalta Nietzsche e se identifica com ele por razões que outros considerariam risíveis, se não completamente desonrosas. A paixão do opróbrio… O que Cioran mais aprecia em Nietzsche não é tanto o filósofo (aquele que debate com Schopenhauer, Hegel, Kant, Platão, etc.), mas “o poeta e visionário”,[52] o “louco dionisíaco”, o caso trágico e, por isso mesmo, criador. No Livro das ilusões, esta confissão: “Nenhum sistema filosófico me deu o sentimento de um mundo independente de tudo o que não é ele. É doloroso, mas é assim: podeis ler todos os filósofos que quereis, nunca sentireis que vos tornastes um outro homem. Naturalmente, dentre os filósofos excluo Nietzsche, que é muito mais que um filósofo.”[53] E esse “muito mais…”, pelo qual Nietzsche revela a sua natureza titânica, excede o domínio da Razão. Roland Jaccard escreve em A Loucura:

O louco lembra-nos que alguma coisa está errada na racionalidade dominante, que atrás da fachada esconde-se uma outra realidade; implicitamente, ele contesta nossas certezas e nos diz coisas inoportunas e escandalosas, que não queremos ouvir. “Em todos os tempos”, escreveu Freud, “os que tinham alguma coisa a dizer e não o podiam fazer sem perigo, adotavam o hábito de passar por loucos.”[54]

A figura do louco é recorrente na obra de Nietzsche. Em Gaia ciência, é um louco, com uma “lanterna acesa em plena manhã”, que corre pelo mercado gritando: “Procuro Deus! Procuro Deus!”[55] Michel Haar considera a hipótese de que a “loucura” dos últimos anos de Nietzsche tenha sido a sua última masquerade, o último refúgio da sua preciosa solidão:

Como Dioniso, que fora a sua última “identidade”, o eu de Nietzsche é dilacerado, esparramado, segundo a perspectiva da totalidade dispersa que ele encarnará doravante. O mutismo final da loucura seria, como ele o escreve pouco antes de deixar de escrever para sempre, “a máscara que esconde um conhecimento fatal e demasiado seguro”, mas, que tipo de conhecimento? O conhecimento, talvez, de que a linguagem não pode romper o princípio de identidade sem que ela mesma sofra uma ruptura, não pode a ele submeter-se sem renunciar a dizer a profundeza do ser. Assim, a destruição da linguagem metafísica seria, para Nietzsche, uma experimentação levada ao limite da autodestruição do destruidor enquanto locutor.[56]

Cioran flertou com o destino que Nietzsche efetivamente conheceu, viveu obcecado pela possibilidade de uma dissolução total do eu, pela perspectiva de terminar “louco”. “O pensamento que se liberta de todo preconceito se desagrega e imita a incoerência e a dispersão das coisas que quer apreender. Com ideias ‘fluidas’ podemos nos espalhar sobre a realidade, aderir a ela, mas não explicá-la. Assim, paga-se caro o ‘sistema’ que não se desejou.”[57] Aqui também faz-se notar uma referência tácita a Nietzsche, na ideia de “expiar” a recusa do sistema, a exigência fragmentária, insinuando que o rigor sistemático seria necessário à manutenção da vida mesma. Carecendo de sistema, o “eu” se desagrega, se dissolve… Em Do inconveniente de ter nascido (1973), este comentário (irônico?): “Nietzsche teve muita sorte em acabar como acabou. Na euforia!”[58] O autoproclamado “Exilado metafísico” não teve a mesma “sorte” que o seu ilustre predecessor: ele, que viveu amaldiçoando a consciência e glorificando a inconsciência como uma “pátria”,[59] terminou com Alzheimer.[60] Teria ele preferido outra doença degenerativa, uma maneira diferente de reintegrar o inorgânico? Será que recebeu o Alzheimer como uma “bênção”?

Desrazão, lucidez e máscara

A obra de Cioran, pensando e escrevendo após Nietzsche, manifesta uma relação paradoxal entre desrazão, lucidez e máscara. Em seu terceiro livro francês, A tentação de existir (1956), ele afirma que o estilo é ao mesmo tempo “uma confissão e uma máscara”.[61] E, a julgar pela relevância do estilo no seu pensar-dizer, pode-se inferir que Cioran tinha muito a confessar e a ocultar… Quanto à função das máscaras, a diferença entre ele e Nietzsche talvez possa ser compreendida a partir do seguinte comentário, numa carta de Cioran a Gabriel Liiceanu, datada de 28 de junho de 1983: “Os outros normalmente portam uma máscara para se engrandecer; eu, para me diminuir.”[62] Cioran encarna a figura do Fracassado (Raté), “sub-homem” ou “pós-homem”, dando ares de um anti-Zaratustra, o que levou Sylvie Jaudeau a escrever um livro intitulado “Cioran, o último homem”.[63] Peter Sloterdijk também observou que Cioran se encontra filosoficamente nas antípodas de Nietzsche: enquanto o filósofo alemão declara Amor fati, o pensamento de Cioran – conjunto de exercícios negativos – estaria mais para o Odium fati.[64] O pensador romeno pode aceitar as premissas (trágicas, antimetafísicas) de Nietzsche, mas as conclusões são bastante diversas: um é o pensador do Sim; o outro, do Não. À parte as divergências intelectuais e temperamentais, Cioran se sente próximo de Nietzsche pela exigência fragmentária e pelo princípio de estilo, pela necessidade apolínea de “dar estilo” ao seu caráter – “uma arte grande e rara!”[65] Nietzsche, afinal, foi um profundo psicólogo (e Cioran sabia bem disso):

Pois uma coisa é necessária: que o homem atinja a sua satisfação consigo — seja mediante esta ou aquela criação e arte: apenas então é tolerável olhar para o ser humano! Quem consigo está insatisfeito, acha-se continuamente disposto a se vingar por isso: nós, os outros, seremos as suas vítimas, ainda que tão só por termos de suportar sua feia visão. Pois a visão do que é feio nos torna maus e sombrios.[66]

“Em todos os tempos, os que tinham alguma coisa a dizer e não o podiam fazer sem perigo, adotavam o hábito de passar por loucos.” É possível que a afirmação de Freud – citado por Jaccard – se aplique a Nietzsche e Cioran. Os “perigos” são de ordem objetiva e subjetiva, externos e internos. Os hereges correm um duplo risco, o de perecer nas fogueiras da Inquisição ou na fornalha do seu “maldito eu”.[67] Quanto aos primeiros: censura, perseguição, cancelamento; quanto aos segundos: tédio (ennui), melancolia, abulia, desespero, tentação da loucura ou do suicídio… Se é verdade que Cioran foi um crítico veemente da psicanálise, não é menos verdade que ele se providenciou uma prática terapêutica ad usum proprium: a escrita funcionava para o pensador romeno como uma “farmacografia”, um espaço poético de elaboração de “venenos abstratos”. Porque expelir um “veneno” é curar-se provisoriamente, é “livrar-se de seus perigos”.[68] Relendo a sua obra em retrospectiva, Cioran diz que escrever o ajudou a “passar de um ano ao outro, pois as obsessões expressas eram atenuadas e, parcialmente, superadas.” E acrescenta:

Produzir é um alívio extraordinário. E publicar também. Um livro que se publica é sua vida ou parte de sua vida que se torna exterior a você, que não lhe pertence mais, que parou de atormentá-lo. A expressão diminui, empobrece, alivia você do seu próprio peso, a expressão é perda de substância e liberação. Esvazia, logo salva, priva você de um excesso incômodo. […] O resultado? Suportei-me melhor, assim como suportei melhor a vida. Cada um se cuida como pode.[69]

Longe de nós patologizar Cioran. A julgar pela gravidade do seu caso, ele até que se saiu relativamente bem (“Cada um se cuida como pode”). Uma hermenêutica compreensiva, generosa, deve evitar rótulos como “louco”, “irracionalista”, “niilista”, “reacionário”, entre outros. É preciso encontrar um ponto arquimediano entre a generosidade hermenêutica de deixar o autor falar e o distanciamento crítico em relação ao seus atos de fala. Não confundir-se com o objeto de análise. Tratemos a “loucura” em questão com o distanciamento (e a ironia) que a hermenêutica exige, conscientes de que o Cioran-em-si é incognoscível ou simplesmente inexistente. Seria a loucura nada além de uma máscara? Seria esquecer que, para pensadores antimetafísicos, nenhum intervalo entre a máscara e a pele. O mais profundo é a máscara, poderíamos dizer, remendando Paul Valéry. A propósito da “loucura”, em oposição a um suposto padrão de sanidade mental, citemos Thomas Szasz, autor de O mito da doença mental, a propósito do fenômeno da loucura:

Se, na Idade Teológica, ser humano significava adorar a Deus (Jesus), se ser virtuoso significa ser um cristão de fidelidade a toda prova (um santo) e se ser mau significava ser herege (uma feiticeira), na Idade da Razão ser verdadeiramente humano significa adorar a Ciência (a Tecnologia, o Progresso), ser virtuoso significa gozar de boa saúde (ser feliz), e ser mau significa estar mentalmente doente.[70]

Cioran nos legou uma obra “autopatográfica” que equivale a uma longa confissão negativa, a uma desconstrução temerária de tudo o que, segundo Szasz, significa ser “humano”, “normal”, “virtuoso”, na Era da Fé como na Idade da Razão. Cioran dá a impressão de ser um herege gnóstico extraviado no século 20. A sua “obra” – produto de um désoeuvrement magistral – é uma valiosa fonte de saber humanístico (antropológico, psicológico, existencial, poético, místico-religioso), um repositório de sabedoria heterodoxa acerca da complexidade e dos limites da condição humana.[71] Para alguns, a sua leitura tem um poder catártico, virtudes tonificantes, terapêuticas. Curiosamente, uma “obra” tão sombria como a sua tem servido como uma estranha forma de alento para muitas pessoas. Os casos limítrofes têm muito a nos ensinar, por sua alteridade radical, por essa sua Unheimlichkeit, sobre a mediania da existência, na saúde e na doença, na razão e na desrazão; a sua generosidade consiste em devolver-nos a nós mesmos, às nossas solidões, mostrando-nos – para a nossa devida decepção – que não existem modelos, verdades prontas, receitas de felicidade, respostas dadas de uma vez por todas que possamos encontrar alhures, em outrem, quem quer que seja. No que concerne à vida do espírito e à arte de viver, é preciso recomeçar sempre do zero, por conta própria, sem se beneficiar nem se prejudicar em nada do que outros pensaram e produziram antes de nós. Eles nos mostram como pensar por nós mesmos, a partir do nosso próprio nada. Ne te quaesiveris extra: “Busquei em mim mesmo meu próprio modelo. Para imitá-lo, dediquei-me à dialética da indolência. É tão mais agradável fracassar na vida…”[72]

Devemos queimar Cioran?

O ensaio de Rotiroti se situa no contexto hermenêutico-histórico iniciado por volta dos anos 2000, após a publicação do livro de Alexandra Laignel-Lavastine, Cioran, Eliade, Ionesco: l’oubli du fascisme [Cioran, Eliade, Ionesco: o olvido do fascismo] (PUF, 2002). Cioran havia falecido em 1995 e, paulatinamente, já desde antes da sua morte, o seu passado de extremismo político à direita, manchado pela simpatia com o hitlerismo e pelo engajamento na Guarda de Ferro, começou a ser exumado e passado em revista. “Somos todos perseguidos por nossas origens”, escreveu ele em 1960,[73] talvez atormentado pelos fantasmas do passado legionário, preocupado com a inevitável deflagração da verdade sobre seus erros políticos de antanho.

Não se pode apagar o passado, o que foi nele depositado em atos ou palavras. Cedo ou tarde ele irrompe na superfície do presente, tão mais intensivamente quanto mais se deseja escapar dele ou ocultá-lo. “Não há nada oculto que não venha a ser revelado, e nada escondido que não venha a ser conhecido e trazido à luz” (Lucas 8:17). Era inevitável. Quem não sabia, ou sequer suspeitava, descobriu que Cioran havia sido fascista em sua juventude, um admirador de Hitler (e Lenin[74]), cuja ascensão o jovem estudante romeno testemunhou de perto, quando bolsista na Alemanha, de 1933 a 1935. “O escritor que fez coisas estúpidas na sua juventude, logo na estreia, é como uma mulher com um passado vergonhoso. Nunca perdoada, nunca esquecida”, lamentou ele em carta ao irmão, Aurel, datada de 1979 (muito antes, portanto, que Transfiguração da Romênia e outros textos políticos de juventude fossem trazidos a lume). Mais do que inevitável, era mesmo necessário, não só no sentido de uma exigência ético-política, mas no sentido ontológico de necessidade (do grego Ananké).

Laignel-Lavastine tem dúvidas quanto ao arrependimento do autor de Transfiguração da Romênia.[75] Ela desconfia que ele nunca tenha abandonado suas antigas posições políticas, que o pessimismo, o cinismo, a ironia e a negatividade dos seus escritos franceses sejam disfarces de um pensamento totalitarista, reacionário, antissemita, que permaneceu inalterado ao longo das décadas. A autora atualiza, mirando em Cioran, a pergunta feita por intelectuais comunistas (entre eles Bertold Brecht), em 1946, na revista Action: Faut-il brûler Kafka? Devemos queimar Cioran? Por mais que ela não se digne a responder afirmativamente, de modo categórico, a pergunta já contém em si a intenção.

A crítica francesa se mostra determinada a estigmatizar Cioran como um sempiterno fascista e antissemita. Ela espera que o seu veredito seja acolhido pelos leitores como uma verdade objetiva e definitiva, uma evidência inquestionável. O vício das ideologias, como o das religiões, é o dogmatismo (religioso ou secular), a pretensão de possuir a “verdade verdadeira” sobre todas as coisas, pretender oferecer explicações e respostas prontas, universalmente válidas, para este ou aquele problema, este ou aquele fenômeno. Uma ideologia supõe uma visão de mundo, um sistema de ideias e de crenças, um esquema interpretativo da realidade que acredita possuir a chave universal para todos os problemas. Como um oráculo que contém respostas e soluções para tudo, um elixir alquímico capaz não somente de penetrar a verdade oculta na realidade aparente, mas sobretudo de transformá-la em seus fundamentos mesmos. Toda ideologia comporta um essencialismo; é um duplo abstrato, um simulacro de “como as coisas são”. Asim, uma vez dotado de uma “essência do antissemita”, antissemita para sempre…? Enfim, ainda que lhe apresentassem evidências suficientes para dissipar qualquer suspeita de antissemitismo (supondo que tais evidências existam e estejam à nossa disposição), os ideólogos ainda assim teriam necessidade dos seus bodes expiatórios, ainda assim insistiriam em acusar Cioran de eterno antissemita, revelando para a opinião pública a sua essência imutável e inconfessável…[76]

Rotiroti parte do requisitório de Laignel-Lavastine para problematizar o “caso” Cioran, mas, à diferença da crítica francesa, não tem a pretensão de jogá-lo na fogueira. O exegeta italiano sabe que o veredito dela não é unânime, é tudo menos uma verdade inequívoca. A figura apresentada por Laignel-Lavastine é, em grande medida, um espantalho ideológico. Cumpre assinalar que Cioran passou por uma reviravolta interior, vindo a mudar profunda e verdadeiramente. O autor de língua francesa diverge drasticamente do romeno (ex-fanático). A tentação totalitária (ditatorial) do “primeiro Cioran”, o jovem autor de Transfiguração da Romênia, ficou para trás, morto como o seu passado, tornando-se com o tempo tão distante e estranha para ele quanto o nacionalismo desesperado de sua juventude. Se tivesse morrido jovem, antes de expatriar-se e tornar-se um écrivain de langue française, e se a sua obra se reduzisse aos escritos romenos, Cioran teria permanecido um intelectual de extrema-direita sem nenhuma projeção internacional (e provavelmente irrelevante do ponto de vista da cultura universal). Mas não foi este o caso. Enfim, à diferença de Eliade e outros que jamais renegaram a sua fé legionária, o destino de Cioran foi fazer de si um Renegado absoluto (dir-se-ia “metafísico”), um “Traidor Modelo”, o “Homem-fora-de-tudo”. Se é que algum dia possuiu verdadeiramente essa fé…[77]

Isento de sanha inquisitorial, Rotiroti deseja antes de tudo compreender as causas (objetivas e subjetivas), as razões e paixões que levaram Cioran a defender ideias totalitárias e uma solução ditatorial para resolver os problemas do seu país. Menção seja feita à análise – feita a partir de um texto de juventude de Cioran, “Nae Ionescu ou o drama da lucidez” – da influência exercida pelo carismático professor sobre a jovem geração romena de 1927, Cioran incluído. Adorado pelos alunos, Ionescu foi quem cooptou parte da tânără generație din ‘27 para o movimento ultranacionalista, racista e xenofóbico da Guarda de Ferro (ou Legião do Arcanjo Miguel, pseudônimo religioso). Corneliu Codreanu, o fundador, antissemita convicto, proponente do assassinato como método político, era um líder carismático e messiânico (um populista) que prometia uma “nova Romênia” (grandiosa, imponente) como recompensa do sacrifício de sangue exigido pela Legião. O legionarismo foi um fenômeno político, religioso e cultural ao mesmo tempo. O homem legionário devia estar disposto a matar e a morrer em nome da pátria.[78] Enfim, Rotiroti identifica em Ionescu – em seu trăirism[79]e, sobretudo, na sua “consciência do fracasso” – o protótipo da lucidez reivindicada por Cioran (fatalista, descrente, “derrotada”).

Não se trata de inocentar Cioran, justificar ou ocultar os seus erros passados.[80] “Cioran é cúmplice, inconscientemente, talvez, no milênio passado, do mal absoluto de Auschwitz. É um homem culpável que se quer desculpável”, assevera Rotiroti, citando como evidência uma anotação nos Cahiers (datadade 1964), na qual Cioran afirma não poder lamentar seus erros de juventude, acrescentando que o melhor a fazer é “aceitar o nosso passado, ou então não pensar mais nele, considerá-lo morto, bem morto.”[81] Foi isso que ele tentou fazer na sua nouvelle écriture française, no espaço literário da “obra” inaugurada pelo Précis de décomposition (seu livro de estreia em francês e o primeiro após a Segunda Guerra), “obra” em grande medida palinódica, conjunto de exercícios negativos em franca oposição à sua identidade romena, ao seu eu de outrora (“pensar contra si próprio”).[82] A “decomposição” foi o lote de Cioran.

A polícia ideológica esperava dele uma retratação pública, um mea culpa oficial, o que Cioran nunca fez. Deu azo, assim, à suspeita de dissimulação, de ter sustentado até o fim o mesmo pensamento (meta)político, os mesmos ideais “utópicos”, doravante secretamente, em sua pacata vida francesa, apenas para evitar dores de cabeça. Cioran se recusava – como atestam os Cahiers – a lamentar seus erros de juventude, como se isso não fosse mudar nada, o que não deixa de ser verdade, mas não é uma razão para furtar-se da responsabilidade nem da culpabilidade. Aliás, isso é o que não lhe faltava, muito pelo contrário. “Toda a sua obra está maculada pela culpa e pela doença da culpa. O fato de Cioran liquidar o seu passado sem enfrentá-lo francamente talvez tenha algo a ver com a esfera da ‘psicopatologia’, sugere Laignel-Lavastine, mas, na ausência de ferramentas, ela não se julga apta a sustentar essa hipótese”, observa o psicanalista italiano. O problema, como nos mostra Rotiroti, é que essa má consciência não está ligada estritamente aos seus erros políticos de juventude: é uma culpa pré-natal, vaga como a nostalgia, resultante do “inconveniente de ter nascido” ou, mais precisamente, do duplo “inconveniente” ter nascido… romeno.

Atraído por formas de sabedoria que outrora rechaçou (pirronismo, budismo), o “segundo” Cioran afirma que “é absurdo imaginar que a verdade consiste na opção, quando toda tomada de posição equivale a um desprezo pela verdade. Para nossa infelicidade, a escolha, a tomada de posição é uma fatalidade a que ninguém escapa.”[83] Nem Cioran escapa. “O trágico da não-escolha é, em todo caso, uma escolha de liberdade. Viver é atravessar o mal da vida na figura do tempo, da história e da escrita. A verdadeira liberdade para Cioran é decidir não escolher a liberdade”, pondera Rotiroti.[84] A interpretação de Sloterdijk vai ao encontro da sua. Segundo o exegeta alemão, “a obra desse existencialista da recusa equivale a uma sucessão de cartas de recusa das tentações de se implicar e de adotar uma posição. Seu paradoxo central se cristaliza assim cada vez mais claramente: a posição do homem sem posição, o papel do ator sem papel.”[85]

Uma das questões levantadas pelo ensaio de Rotiroti tem a ver com a problemática abordada por Theodor Adorno em textos como Dialética negativa e Minima moralia, entre outros. É conhecida a crítica de Adorno das condições de possibilidade da criação artística depois de Auschwitz. Se a poesia e a arte ignoram o sofrimento extremo das vítimas do Holocausto, o horror inominável dos campos de concentração, elas mal se distinguem da música agradável que tinha por função entreter os oficiais nazistas entediados na fábrica da morte. “Auschwitz demonstrou de modo irrefutável o fracasso da cultura”, da civilização, da Razão enquanto tal, degenerada em princípio totalitário.[86] Não é uma coincidência, em relação a esta constatação de Adorno, que a nouvelle écriture française de Cioran seja inaugurada, em 1949, sob o signo da “decomposição”. Após Auschwitz, a arte só se redime mediante o testemunho catástrofe representada por Auschwitz, desse fracasso do humanismo degenerado em seu exato oposto (barbárie, desumanização, coisificação do humano, banalidade do mal etc.).

Kafka é evocado em Dialética negativa como o protótipo do artista para um mundo absurdo, com seus campos de concentração e assassinato em escala industrial. Os exegetas têm observado as coincidências e afinidades entre Kafka e Cioran. Sloterdijk nota a similitude entre o pensador romeno e certos personagens kafkianos, notadamente o Artista da Fome. Na sua interpretação, o caso de Cioran dá a conhecer uma forma emergente de “antropotécnica”. Sloterdijk vê Cioran como o praticante de um novo tipo de “exercícios espirituais”, de um ascetismo sui generis (imanente, secular, profano), cuja representatividade e originalidade se fazem notar na rejeição de todo e qualquer telos (finalidade, objetivo, propósito determinado).[87] Poética da inutilidade, da inação e da aporia, exercícios de antieficácia, inutilitarismo… Segundo o exegeta alemão, a obra de Cioran pode ser lida como um conjunto de exercícios negativos “a meio-caminho entre a ginástica e a ascese, experimentando todas as posições do homem sem posição”.[88]

É mais ou menos o mesmo preconizado por Adorno como antídoto ao risco totalitário do pensamento: a dialética negativa é uma dialética sem síntese nem unidade, pensamento contingente e infundado (antimetafísico, sem fundamento), que se demora na aridez da negatividade, na falta de saída, na aporia, no impasse, no Insolúvel.[89] Diferenças à parte, Cioran e Adorno coincidem no imperativo de um pensamento negativo, fragmentário, descontínuo, resolutamente antissistemático.[90] Por um princípio de reversibilidade paradoxal dos opostos, o fanatismo total do jovem Cioran cede lugar à lucidez como dispositivo de antifanatismo, a tentação totalitária é suplantada pelo fragmentarismo como imperativo ético-estético, princípio de antissistema[91]

A lucidez “luciferina” praticada por Cioran é uma clarividência intermitente que evolui a sobressaltos. Ela não se tornará translúcida (e vazia) senão tardiamente. “O ceticismo derrama demasiado tarde suas bênçãos sobre nós, sobre nossos rostos deteriorados pelas convicções, sobre nossos rostos de hienas com um ideal”,[92] escreveu ele em 1952, demonstrando uma “sede de dúvidas” dificilmente saciável (e inaudita nos escritos romenos). A paixão do vazio, a obstinação em descer até as “raízes do vazio”, para aí se instalar, também é uma novidade que pertence ao “segundo” Cioran (é uma paixão alheia ao jovem pensador). A consciência malsã, insone, fragmentada, descrê da ação como algo suspeito, perigoso ou inútil, causa de todo o mal.[93] “Mesmo o bem é um mal”, sentencia o “Não-liberto” (Indélivré), esse Bogomilo sem redenção extraviado no século 20. Mas, escrever é ainda “agir”, é inserir-se no reino dos atos, assumir um “eu”, compactuar com a ilusão, com o engano e com a farsa geral…
Segundo Gabriel Marcel, filósofo existencialista católico e um dos seus melhores amigos franceses,

[…] estamos na presença de um dos testemunhos de acusação dos mais resolutos, dos mais veementes já surgidos ao longo do processo interminável que se instaurou entre o homem e o mundo, ou Deus, a partir do momento em que surgiu essa anomalia singular chamada reflexão. E o que não se pode contestar é, para empregar um termo de que se tem abusado, a autenticidade desse testemunho.[94]

Nos escritos desse “aliado na contracorrente”, Marcel escuta “o grito incoercível da consciência ulcerada”.[95] Essa imagem pungente que não pode ser devidamente compreendida sem referência ao problema – originalmente teológico e metafísico, mas igualmente antropológico, ético e político – do mal. “Estamos afogados no mal”, escreve Cioran em História e utopia.[96] A existência do mal no mundo é indissociável da existência humana no mundo… “Satã, anjo decaído transformado em demiurgo, encarregado da Criação, insurge-se contra Deus e revela-se, neste mundo, mais à vontade e até mais poderoso do que Ele; longe de ser um usurpador, é nosso mestre, soberano legítimo que sobrepujaria o Altíssimo se o universo estivesse reduzido ao homem.”[97]

Segundo Sylvie Jaudeau, uma de suas mais argutas exegetas, “Cioran não encontrou Deus, mas o mal. […] Seu grande mérito é assinalar a impureza do ser sem a qual nada se cria, precavendo contra os erros do angelismo, lançando na cara do mundo essa mancha que preside o seu nascimento.”[98] O “angelismo” é uma ilusão purista, a pretensão de purismo que leva muitas pessoas ao autoengano convicto de estarem do lado do “bem” na luta contra o “mal”, como se fossem anjinhos de uma pureza imaculada. “Só a impureza é sinal de realidade”, de veracidade – eis a amarga lição que extraímos da vida…[99] “A obra de Cioran, animada de uma vitalidade autônoma, ‘flamejante’, é por si só uma figuração do mal”,[100] conclui Jaudeau.

Aquele que foi cúmplice do mal absoluto de Auschwitz, segundo Rotiroti, passou o resto dos seus dias atormentado pela consciência “ulcerada” do mal. Por incrível que pareça, tornou-se uma voz benéfica – vox clamantis in deserto – a nos alertar contra a atualidade do mal, sobretudo em nós mesmos… Um farol de lucidez no “fundo de um inferno em que cada instante é um milagre”?[101] No conflito entre fanatismo e lucidez (do qual os seus textos romenos oferecem uma vívida ilustração), prevaleceu a lucidez – sinônimo de ceticismo, incerteza, não-saber, vazio. A filosofia negativa de Cioran tem a virtude de conscientizar e prevenir sobre o mal radical que só o homem é capaz de infligir ao próprio homem (e a todos os seres):

Curiosamente, a maioria dos mortais se revelam inaptos ou renitentes a detectar os vícios, a constatá-los em si mesmos ou nos outros. É fácil fazer o mal: todo mundo o consegue; assumi-lo explicitamente, reconhecer sua inexorável realidade é, por outro lado, uma proeza insólita. Na prática, qualquer um pode rivalizar com o diabo; na teoria não ocorre o mesmo. Cometer horrores e conceber o horror são dois atos irredutíveis um ao outro: não há nada em comum entre o cinismo vivido e o cinismo abstrato.[102]

Cioran conheceu os dois tipos de cinismo, primeiro um, depois o outro. Ele afirma a oposição irredutível entre fazer o mal (“cometer horrores”) por um lado, e meditar sobre o mal (“conceber o horror”) por outro. O raciocínio não é absurdo: conhecer o mal, penetrá-lo lucidamente com a visão do intelecto, indispõe à sua prática. Inversamente, os piores malfeitores são aqueles dotados de boa-consciência, da certeza tranquilizadora de estarem fazendo o “bem” – em nome de Deus, da nação ou de qualquer outro nobre pretexto. Tudo considerado, a obra de Cioran é uma obra de desilusão, desengaño. E quando a vida mesma se tornou impura, estranha, suspeita, a “grande Desconhecida”, a lucidez – “culminação do processo de ruptura entre o espírito e o mundo”[103] – indispõe à vida e à morte, fazendo do homem lúcido um “fantasma diurno”, um “pós-homem”, um “ersatz de ser”. “(Outrora tive um ‘eu’; agora sou apenas um objeto… Empanturro-me de todas as drogas da solidão; as do mundo foram fracas demais para me fazer esquecê-lo. Tendo matado o profeta em mim, como terei ainda um lugar entre os homens?)”[104]

Cioran faz mal? As suas lamentações de Jó extraviado nos intoxicam? Seria “consciência enferma” contagiosa? Que dizer da sua “autopatografia” desavergonhada? Devemos queimá-lo? Cabe a cada qual tirar suas próprias conclusões (ou apoiar-se nas conclusões de terceiros). Dizíamos que a lucidez cioraniana evolui a sobressaltos, que não se tornará “translúcida” (e vazia) senão tardiamente. Grosso modo, é a mesma avaliação de Patrice Bollon. O biógrafo francês vê Cioran como um caso de consciência redimida – mediante a autocrítica e a dignidade do ceticismo – em relação aos erros de seu passado, um exemplo de autossuperação contra todas as expectativas, ainda que ela tenha se completado apenas tardiamente.[105] Bollon compara as biografias de Cioran e Wittgenstein, ambos nascidos no Império Austro-húngaro, mas em condições muito distintas: Wittgenstein no seio de uma ilustre família austríaca; o transilvano Cioran, na periferia do Império, longe da civilização e de suas luzes.

Em resumo, lá onde Wittgenstein se encontrava, por herança, em pé de igualdade com seu tempo e sua tarefa, Cioran precisou, por sua vez, percorrer em uma única vida inúmeros séculos, fazer a síntese entre a sabedoria primitiva dos camponeses de Răşinari, que costumavam zombar das desordens do mundo histórico, cultivando uma relação quase cósmica com o universo, a do século 18 francês, com sua filosofia implícita do estilo, e a nietzschiana de final do 19, após a “morte de Deus” – sem esquecer, é claro, de tirar a conclusão moral do nosso século 20, que terá sido o da técnica ao serviço dos poderes e da sua ausência de sentido, leia-se, dos totalitarismos.[106]

A exegese de Rotiroti se aproxima da conclusão de Patrice Bollon, em sua primorosa biografia crítica: Cioran, l’hérétique (1997). Bollon não tem dúvidas sobre a reabilitação intelectual de Cioran, mas enfatiza que ela tardou a efetuar-se, que Cioran precisou fazer um esforço permanente para despedir-se, com dificuldade, dos seus “dogmas inconscientes” (Breviário de decomposição). A retificação constatada pelo biógrafo se dá em dois tempos e em dois níveis distintos, no intervalo entre a mudança irrefletida e puramente intuitiva, quase por instinto, e a plenaconsciência, por fim, da diferença entre quem Cioran foi e quem se tornou, entre o fanatismo de juventude e o ceticismo – a lucidez – do escritor francês em sua maturidade. Paradoxalmente, “seu fracasso corresponde justamente ao seu triunfo”, observa Bollon, com quem concluímos este prefácio:

Que Cioran tenha finalmente alcançado seu objetivo, é claro que isso importa, mas talvez não constitua, afinal de contas, o mais essencial. O valor profundo de sua filosofia reside alhures, no caminho que o terá conduzido das mais espessas trevas à luz. […] Os gregos pensavam – e a religião cristã retomou para si este motivo – que não existe sábio que não tenha precisado superar ao longo de sua vida uma grande provação, pela qual ele se elevava por cima de sua estreita condição humana. Para Cioran, essa cicuta consistiu – e consiste até hoje, de forma póstuma – em suas infelizes declarações romenas e alemãs de juventude, que nem toda a água do mar, como dizia Lautréamont, seria capaz de lavar. É possível que Cioran não tivesse se tornado ele mesmo sem elas. É, com efeito, contra elas que ele se construiu. Foi delas que ele tirou o centro do seu pensamento. E por elas que entreviu a necessidade de uma arte de viver “terapêutica” – o que era para ele a função suprema do pensamento: curar, antes de tudo de si mesmo…[107]


NOTAS:

[1] Não poderiam faltar iniciativas pelo viés de uma “psicanálise selvagem”, como faz Nancy Huston. A escritora canadense repreende Cioran “por ter problemas com a própria mãe, entre outras coisas, empreendendo isso que ele odiava: uma psicanálise selvagem, segundo o conceito freudiano. O erro é grosseiro e perde a essência de um pensamento capaz de compreender o ser-no-mundo de outro modo. […] Se não tivéssemos medo de cometer o mesmo erro, seríamos tentados a dizer que Nancy Huston opera uma contratransferência em relação a Cioran. A própria possibilidade dessa selvageria de dois gumes é suficiente para mostrar a ilegitimidade de tal interpretação.” DEMARS, Aurélien, Le pessimisme jubilatoire de Cioran : enquête sur um paradigme métaphysique négatif. Tese de doutorado em Filosofia, Université Jean Moulin Lyon 3, 2007, p. 39.

[2] CIORAN, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 2011, p. 148.

[3] Fórmula-título do livro de 30 entrevistas sobre Cioran feitas por Ciprian Vălcan (Átopos Editorial, 2023). Como muitas outras fórmulas cunhadas por Cioran para descrever as personalidades literárias que lhe interessavam, esta – relativa a Jorge Luis Borges, em Exercícios de admiração – lhe cai como uma luva.

[4] CIORAN, Silogismos da amargura. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 104.

[5] IDEM, Breviário de decomposição, p. 148.

[6] BERGSON, Henri, Introdução à metafísica. Trad. de Franklin Leopoldo e Silva. In: Col. “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 23.

[7] Ibid., p. 18.

[8] “O detentor do Verbo possui o privilégio de definir e classificar; a ascendência que exerce pela palavra é um prolongamento ‘civilizado’ da coação física. ‘Comer ou ser comido, essa a lei da selva. Definir ou ser definido, essa a lei do homem’, afirma o psiquiatra norte-americano Thomas Szasz, que acrescenta: ‘A luta pelo Verbo é realmente uma questão de vida ou de morte. Uma cena clássica dos filmes de western mostra dois homens em luta desesperada para recuperar uma arma, caída ao chão. Aquele que a alcança primeiro dá o tiro e salva a pele; o outro, ao contrário, deixa-se abater, e morre. Na realidade, o prêmio não é uma arma, mas um rótulo: aquele que consegue pregá-lo primeiro é o vencedor da batalha; o outro, rotulado, fica reduzido ao papel de vítima.” JACCARD, Roland, “Linguagem e poder: rotulagem psiquiátrica e invalidação social”, in A Loucura. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 37.

[9]Transfiguração da Romênia é, como o primeiro livro de Cioran, Nos Cumes do Desespero, o resultado de muitas noites de insônia. Cioran fala com a autoridade pessoal de quem ‘passou muitas noites a fio meditando sobre o destino da Romênia’. Este livro possui tanto a clareza especiosa e a intensidade ‘pesadelesca’ daqueles pensamentos temíveis que nos assaltam nas primeiras horas da manhã. As perguntas que mantinham o jovem Cioran acordado eram as mesmas questões que continuariam atormentando-o pelo resto da sua vida: Quem sou eu? Que significa ser romeno? Ou, ‘como é possível ser romeno?’, conforme ele colocará anos depois em A tentação de existir, aludindo à pergunta de Montesquieu: ‘Como se pode ser persa?’ A fina ironia da pergunta sublinha o absurdo, o caráter aberrante, de tudo o que é marginal quando visto do centro. A pergunta acertou como um espinho na carne de Cioran.” ZARIFOPOL-JOHNSTON, Ilinca, Searching for Cioran. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 2009, p. 93.

[10] Cf. ROSSET, Clément, “O descontentamento de Cioran” (post-scriptum), in Alegria: a força maior, de Clément Rosset. Trad. de Eloísa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, pp. 95-102.

[11] IDEM, “Trágico e silêncio: dos trágicos gregos à psicanálise”, in Lógica do pior. Trad. de Fernando J. Fagundes Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, pp. 65-71.

[12] Coincidência biográfica que não escapou a Patrice Bollon. Cf. BOLLON, Cioran l’hérétique. Paris: Gallimard, 1997, p. 189.

[13] Por conta dessa situação geopolítica problemática, os pais de Cioran seriam presos e deportados pelas autoridades húngaras, durante a Primeira Guerra, quando ele tinha por volta de 6 anos, para campos de trabalho forçado, acusados de nacionalismo e separatismo. Além disso, até o Tratado de Trianon os romenos eram tratados como cidadãos de terceira categoria em sua própria terra, abaixo dos alemães/austríacos e dos húngaros. A presença do gendarme húngaro desfilando pelo vilarejo era fonte de terror para o pequeno Emil.

[14] BOLLON, Patrice, Cioran, l’hérétique, p. 277.

[15] À diferença de outros ilustres representantes da Jovem Geração de 1927, como Mircea Eliade e Constantin Noica, Cioran renegou suas convicções e esperanças políticas de juventude, transformando-se em um “sofista errante”. Segundo Marta Petreu, “o leitor familiarizado com sua vida e obra romenas descobre no Breviário de decomposição um autor disposto a contradizer suas crenças e ideias passadas, a abjurar os seus antigos ideais. Ele rejeitava as suas convicções de outrora admitindo que as tivera, mas afirmando que não mais refletiam as suas crenças. Contudo, o mais inquietante acerca do Breviário é o fato de que Cioran condenava e refutava as suas antigas crenças não em nome de novas ideias e convicções – pois já não tinha nenhuma –, mas por causa da ausência de todo ideal. O Breviário de decomposição é o livro de um autor que passou do engajamento total ao niilismo dos grandes sofistas.” PETREU, Marta, An Infamous Past: E.M. Cioran and the Rise of Fascism in Romania. Transl. by Bogdan Aldea. Chicago: Ivan R. Dee, 2005, p. 234.

[16] “Essa necessidade de remorsos que precede o Mal, ou melhor, que o cria…” CIORAN, Silogismos da amargura, p. 32.

[17] IDEM, História e utopia, p. 12.

[18] IDEM, Entrevista com Fernando Savater, in Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, p. 24.

[19] IDEM, Breviário de decomposição, p. 215.

[20] Cioran remenda Kierkegaard, para quem a consciência é “o espinho enterrado na carne” (O desespero humano): “A consciência é muito mais do que o espinho, é o punhal na carne.” IDEM, Do inconveniente de ter nascido, p. 46.

[21] IDEM, Silogismos da amargura, p. 11.

[22] Ibid., p. 17.

[23] “Todos os aforismos que escrevi são… […] comprimidos que eu me providencio e que fazem o efeito.” CIORAN, Entrevista com Fritz J. Raddatz, in Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, p. 172.

[24] SAVATER, Fernando, Ensayo sobre Cioran. Madrid: Espasa Calpe, 2002, p. 28.

[25] CIORAN, Do inconveniente de ter nascido. Trad. de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 91.

[26] IDEM, Breviário de decomposição, p. 127.

[27] IDEM, Pensamentos extraviados (aforismos de Razne). Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. In Revista (n.t.) Nota do Tradutor, no 19, ano IX, vol. 2, dezembro de 2019, p. 240.

[28] Cf. MURICY, Katia, “Ecce homo: a autobiografia como gênero filosófico”, in Figuras da verdade: Nietzsche, Benjamin e Foucault. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; Belo Horizonte: Relicário, 2020, pp. 11-35.

[29] SLOTERDIJK, Peter, “Cioran ou l’excès de la parole sincère”, in PIEDNOIR, V.; TACOU, L. (eds.), Cahier de L’Herne Cioran. Paris: L’Herne, 2009, p. 232.

[30] Ibid., p. 232.

[31] “De fato, podemos ver Cioran como o prior da ordem à qual Nietzsche alude aqui. Sua santa temeridade deriva de uma atitude que Nietzsche considerava como a mais inverossímil, e sem dúvida também como a menos desejável: a ruptura com todas as normas de discrição e de tato – para não mencionar o pathos da distância. […] Nietzsche [ele mesmo] foi um profeta tímido que apenas vislumbrou, pelas rachaduras da porta, as perdas que ele via chegarem.” Ibid., p. 232.

[32] CIORAN, Cahiers: 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997, p. 137.

[33] VĂLCAN, Ciprian, Cioran, um aventureiro imóvel (30 entrevistas). Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. São Paulo: Átopos, 2023, p. 112.

[34] “Sempre que falei sobre os meus distúrbios de todo tipo a alguém que fosse mais ou menos versado em psicanálise, a explicação que davam sempre me pareceu insuficiente ou mesmo nula. Simplesmente não “colava”. Ademais, eu só acredito nas explicações biológicas ou teológicas dos fenômenos psíquicos. A bioquímica de um lado – Deus e o Diabo do outro.” CIORAN, Cahiers: 1957-1972, p. 124.

[35] “Perdi em contato com os homens todo o frescor de minhas neuroses.” IDEM, Silogismos da amargura, p. 58.

[36] BARTHES, Roland, O prazer do texto. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 11.

[37] Equivalente alemão do Raté (francês) e do Ratat (romeno), o “Fracassado” cioraniano.

[38] KIERKEGAARD, Søren A., O conceito de ironia. Trad. de Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 243.

[39] Rotiroti assinala, a propósito de Cioran, “o paradoxo trágico e doloroso de abraçar, aos vinte anos, uma loucura lúcida. Daí o orgulho do fracasso, o frenesi da provação.”

[40] CIORAN, Amurgul gândurilor. Bucureşti: Humanitas, 1991, p. 10.

[41] BLANCHOT, Maurice, A conversa infinita, vol. II (A experiência-limite). Trad. de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007, p. 178.

[42] Ibid., p. 178.

[43] CIORAN, Nos cumes do desespero. Trad. de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2012, p. 51.

[44] Evoquemos, a propósito dessa “suprema loucura”, o título do ensaio de outro filósofo-psicanalista (romeno), Mircea Lăzărescu (que teve como pacientes Constantin Noica e o irmão de Cioran, Aurel): Souffrance, extase et haute folie pendant le XXe siècle [Sofrimento, êxtase e alta loucura no século XX]. Timişoara: BrumaR, 2013.

[45] CIORAN, Nos cumes do desespero, p. 36.

[46] CIORAN, O Livro das ilusões. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 194.

[47] IDEM, Silogismos da amargura, p. 35.

[48] IDEM, “Portrait du civilisé”, La Chute dans le temps. Versão portuguesa: “Retrato do homem civilizado” (trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes), in “Duas diatribes”, Revista (n.t.) Nota do Tradutor, nº 17, vol. 2, dezembro de 2018, p. 221.

[49] IDEM, Entretiens, p. 22.

[50] RORTY, Richard, Contingência, ironia e solidariedade. Trad. de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 16-17.

[51] A respeito do imperativo tecnológico e mercadológico da positividade, manifesta na exigência de transparência total, entre outras instâncias, remetemos a leitora à obra de Byung-Chul Han, notadamente A sociedade da transparência e Psicopolítica.

[52] CIORAN, Breviário de decomposição, p. 69.

[53] IDEM, O Livro das ilusões, pp. 163-164.

[54] JACCARD, Roland, A loucura, p. 10.

[55] NIETZSCHE, A Gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 147.

[56] HAAR, Michel, Nietzsche et la métaphysique. Paris: Gallimard, 1993, p. 63.

[57] CIORAN, Silogismos da amargura, p. 32.

[58] IDEM, Do inconveniente de ter nascido. Trad. de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 24.

[59] “A inconsciência é uma pátria; a consciência, um exílio.” Ibid., p. 110.

[60] Gabriel Liiceanu explora essa coincidência entre o pensamento, a vida e a morte de Cioran: “O tema da morte está de tal modo presente na obra de Cioran que, se quisermos saber como morreu Cioran, parece que não formulamos uma pergunta simplesmente biográfica, mas é como se quiséssemos saber como se concluiu a sua obra. Aquele que se arrogou o monopólio da lucidez devia sem dúvida conhecer um fim à medida desse excesso de lucidez.” LIICEANU, Gabriel, « La mort de Cioran », in Itinéraires d’une vie: E. M. Cioran. Paris: Michalon (Coll. « Fonds Perdus »), 2007, p. 208.

[61] CIORAN, A tentação de existir. Trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’Água, 1988, p. 104.

[62] Apud LIICEANU, Gabriel, Itinéraires d’une vie: E. M. Cioran. Paris: Michalon,  2007, p. 7.

[63] JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme. Paris: José Corti, 1990.

[64] Cf. PIVA, Paulo Jonas de Lima, “Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista”, in Cadernos Nietzsche, nº 13 (2002), pp. 67-88.

[65] NIETZSCHE, A Gaia ciência, § 290, p. 195.

[66] Ibid., p. 196.

[67] “Um Kierkegaard, um Nietzsche, mesmo que houvessem surgido no período mais anódino, não teriam possuído uma inspiração menos fremente, nem menos incendiária. Pereceram em suas chamas; alguns séculos antes teriam perecido nas da fogueira: cara a cara com as verdades gerais, estavam destinados à heresia.” CIORAN, Breviário de decomposição, p. 215.

[68] “Nada mais miserável do que a palavra e, no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! […] Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de livrar-se de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar.” IDEM, Exercícios de admiração: ensaios e perfis. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 152.

[69] CIORAN, “Relendo…”, Exercícios de admiração: ensaios e perfis, p. 157.

[70] Apud JACCARD, Roland, A Loucura, p. 16.

[71] Sloterdijk vê Cioran como um modelo exemplar de antropotécnica. Segundo ele, a sua “obra” permite observar com a maior pregnância possível os principais aspectos do grande rosto da modernidade, a secularização da ascese e a informalização da espiritualidade. […] De livro em livro, ele perseguiu seu exercício de acrobacia existencialista no solo, cuja proximidade com as figuras artísticas de Kafka salta aos olhos.” SLOTERDIJK, Peter, “Cioran ou l’excès de la parole sincère”, Op. cit., p. 233.

[72] CIORAN, Silogismos da amargura, p. 42.

[73] IDEM, História e utopia, p. 12.

[74] No tocante às inclinações políticas extremistas do jovem Cioran, a combinação heteróclita de hitlerismo alemão e leninismo russo foi observada pelos exegetas e biógrafos mais atentos, como Patrice Bollon, preocupados em explicitar a complexidade do seu caso (diferente do de Eliade e outros legionários), antes da Segunda Guerra, contra os detratores que pretendem retratar o jovem Cioran como nada mais, nada menos do que um legionário filonazista de pura cepa. Segundo Tomás Abraham, romeno e judeu radicado na Argentina (professor de filosofia na UBA), o jovem Cioran foi um “nazi de esquerda, qualificação mais precisa em seu caso do que comunista de direita, para quem não há possibilidade de uma nova sociedade sem uma mudança social radical, uma justa distribuição da riqueza sem a qual a indispensável eliminação dos judeus é inútil.” ABRAHAM, Tomás, “Como se fabrica un nazi”, Perfil, 16 de maio de 2021. Disponível em: https://www.perfil.com/noticias/opinion/como-se-fabrica-un-nazi.phtml (acesso em 14/04/2023)

[75] Veja-se a entrevista com Fritz J. Raddatz, realizada em 1986 (Entretiens, pp. 167-187). O entrevistador alemão instala um tribunal ético-político em nome do qual põe Cioran contra a parede, praticamente exigindo dele que reconheça o fundo inequivocamente reacionário, se não fascista, do pessimismo e do niilismo destilados em seus escritos franceses. Raddatz diz coisas como “Nós navegamos em águas profundas…”, numa vaga alusão ao perigo enxergado por ele na “obra” de Cioran, ou “um pequeno terrorista se esconde em você”. Cioran responde: “Reacionário? Pode ser. Mas seria mais justo, penso eu, se você encontrasse para a minha posição uma explicação filosófica em vez de política”, justamente o que os maníacos ideológicos são incapazes de fazer. Este é o problema da politização total de todas as coisas apontada por Ortega y Gasset em A rebelião das massas: ela “se apressa em apagar as luzes, para que todos os gatos fiquem pardos”.

[76] Laignel-Lavastine é uma “franco-atiradora” que, atirando para todos os lados, acerta o alvo errado: Eugène Ionesco. Se o livro é sobre l’oubli du fascisme, “o esquecimento do fascismo”, o dramaturgo romeno – que nunca simpatizou com a Guarda de Ferro e sempre foi crítico do movimento, assim como de Eliade, Cioran e outros que aderiram a ele – não tem por que integrar o título, a não ser por sensacionalismo. Não há fascisme à oublier pelo autor de Rinocerontes, peça que denuncia justamente a fascistização da sociedade romena (e da Europa de modo geral) em meados da década de 1930. Razão suficiente para pôr o livro como um todo sob a suspeita de má-fé e sensacionalismo, com o pretexto da justiça social e histórica em relação à memória do Holocausto e aos horrores da Segunda Guerra como um todo. Obstinando-se em condenar Eliade, Cioran e inclusive quem não tem nenhuma culpa no cartório, a autora se mostra, ela também, em alguma medida, condenável.

[77] Até quem não pode ser suspeitado de complacência com o passado legionário de Cioran, como Tomás Abraham (romeno e judeu naturalizado argentino), acredita que Cioran aderiu à Guarda de Ferro mais por paixão do que por convicção ideológica. A propósito do antissemitismo do jovem Cioran, tal como se manifesta em Transfiguração da Romênia, Abraham afirma que “seu repúdio aos judeus é tão hiperbólico que até parece ingênuo. Uma espécie de Céline romeno, mas sem a maldade nem o ressentimento do francês.” ABRAHAM, Tomás, “Cómo se fabrica un nazi”, Perfil, 16 de maio de 2021. Disponível em: https://www.perfil.com/noticias/opinion/como-se-fabrica-un-nazi.phtml (acesso em 14/04/2023)

[78] Como resultado dessa “política do revólver”, o primeiro-ministro romeno Ion Duca, de orientação liberal-democrática, foi assassinado em 30 de dezembro por 3 legionários.

[79] De trăire (vivência, experiência) e do verbo a trai (vivenciar, experimentar), trăirism é a filosofia-ideologia concebida por Nae Ionescu, inspirado em grande medida na Lebensphilosophie de origem alemã, uma espécie de vitalismo/existencialismo/misticismo tipicamente romeno.

[80] “Cioran é ‘culpado’. Sim. Não há mais dúvidas. A história o condena. Toda a sua obra está maculada pela culpa e pela doença da culpa. O fato de Cioran liquidar o seu passado sem enfrentá-lo francamente talvez tenha algo a ver com a esfera da ‘psicopatologia’, sugere Laignel-Lavastine, mas, na ausência de ferramentas, ela não se julga apta a sustentar essa hipótese.” ROTIROTI, Giovanni, Cioran entre psicanálise e filosofia. Trad. de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes. São Paulo: Átopos Editorial, 2023.

[81] CIORAN, Cahiers: 1957-1972, p. 208.

[82] Cioran encarna paradigmaticamente a concepção antropológica (trágica) de John Gray: “O que parece singularmente humano não é a consciência nem o livre-arbítrio, mas o conflito interno – os impulsos conflitantes que nos separam de nós mesmos.” […] Não é a autoconsciência, mas a divisão de si mesmo, que nos torna humanos.” GRAY, John, A alma da marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana. Trad. de Clóvis Marques. São Paulo/Rio de Janeiro: 2018, p. 107.

[83] CIORAN, Exercícios de admiração, p. 18.

[84] Trata-se do fatalismo cioraniano. Na mencionada entrevista com Fritz J. Raddatz, ele diz: “Na origem da minha posição está a filosofia do fatalismo. Minha tese fundamental é a impotência do homem. Ele não passa de um objeto da história, não seu sujeito. Eu odeio a história, odeio o processo histórico.” IDEM, Entretiens, pp. 167-168.

[85] SLOTERDIJK, Peter, “Cioran ou l’excès de la parole sincère”, Cahier de L’Herne Cioran, p. 233.

[86] ADORNO, Theodor, Dialética negativa. Trad. de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 303.

[87] SLOTERDIJK, Peter, “Cioran ou l’excès de la parole sincère”, Op. cit., p. 234.

[88] IDEM, “Le prieur de la Sainte Folle Témérité”, in Magazine Littéraire, no 508, maio de 2011, p. 54.

[89] “É por isso que sou contra o trabalho. Não deveríamos nem mesmo escrever. A única coisa que importa é ter sempre diante dos olhos esses problemas insolúveis, e viver como Epicteto ou Marco Aurélio. Então, não estamos mais nas histórias vividas, mas na contemplação. Nossos contemporâneos perderam a faculdade de contemplar as coisas. Perderam a arte de perder inteligentemente seu tempo.” CIORAN, Entrevista com Georg Carpat Focke, in Entretiens, p. 259.

[90] “Um pensamento fragmentário reflete todos os aspectos de vossa experiência: um pensamento sistemático só reflete um, o aspecto controlado e, por isso mesmo, empobrecido. Em Nietzsche e Dostoiévski exprimem-se todos os tipos de humanidade possíveis, todas as experiências. No sistema, só fala o controlador, o chefe. O sistema é sempre a voz do chefe: é por isso que todo sistema é totalitário, ao passo que o pensamento fragmentário permanece livre.” IDEM, Entretiens, p. 23.

[91] Muito embora não escrevesse ficção (romances, contos), encontramos na escrita-confissão de Cioran um princípio de polifonia discursiva análogo ao que Bakhtin constatou em Dostoiévski. O fragmentarismo é uma polifonia. “Milhares de escravos clamam em mim suas opiniões e suas dores contraditórias”, lemos nos Cahiers (p. 22). Segundo Ciprian Vălcan, “se os escritos romenos de Cioran se assemelham a um império fortemente centralizado, onde as dissonâncias, as poses ególatras, os gestos de bravura e as manifestações inconformistas dos senhores locais não colocam em xeque a sobrevivência do trono, a supremacia da capital, seus volumes franceses, em contrapartida, parecem aproximar-se do modelo de numerosos Estados pertencentes ao Sacro Império Romano-Germânico, cada um deles obedecendo aos caprichos de tiranos de opereta, defendendo veementemente seus privilégios e sua independência, sem poder subordinar-se a uma ideia unificadora.” VĂLCAN, Ciprian, La concurrence des influences culturelles françaises et allemandes dans l’œuvre de Cioran. Bucureşti : Editura Institutului Cultural Român, 2008, pp. 173-174.

[92] CIORAN, Silogismos da amargura, p. 95.

[93] “Ninguém se move sem submeter-se ao múltiplo, às aparências, ao ‘eu’. Agir é cometer um delito contra o absoluto. A soberania do ato vem, é preciso dizê-lo sem rodeios, de nossos vícios, que detêm um maior contingente de existência que nossas virtudes.” IDEM, História e utopia, p. 72.

[94] MARCEL, Gabriel, “Un allié à contre-courant”, Le Monde, 28 de junho de 1969, in Cahier de L’Herne Cioran, p. 222.

[95] “É por vezes como o grito incoercível da consciência ulcerada. Sim, digo ulcerada: esta palavra me parece traduzir exatamente a impressão que tenho ao ler Le mauvais démiurge, e em particular o texto intitulado Rencontres avec le suicide. Evoquei mais acima Dostoiévski: como não encontraria eu, em algumas páginas, o rastro de Kiríllov? Mas parece-me que fomos ainda mais longe, muito mais longe por um caminho que desce em direção ao desespero inapelável.” Ibid., p. 222.

[96] CIORAN, História e utopia, p. 96.

[97] Ibid., p. 96.

[98] JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme. Paris : José Corti, 1990, p. 212.

[99] CIORAN, Breviário de decomposição, p. 36.

[100] JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme, p. 212.

[101] CIORAN, Le mauvais démiurge, Œuvres. Paris: Gallimard, 1995, p. 1259.

[102] IDEM, História e utopia, pp. 70-71.

[103] IDEM, “Sur la maladie”, La Chute dans le temps, Op. cit., p. 1127.

[104] IDEM, “O Antiprofeta”, Breviário de decomposição, p. 18.

[105] A ‘retificação’ ocorreu nele bastante cedo, desde meados dos anos 40. Mas uma coisa é operar uma mudança; outra é ter plena consciência dela; e sobretudo que essa consciência seja ativa, que modifique em profundidade toda uma arquitetura psicológica. […] A verdade é que talvez Cioran não tenha percebido senão tardiamente em que medida, denunciando essas ‘farsas sangrentas’, ‘grotescas’, que são as utopias, era ele mesmo que descrevia quando joem, sua história pessoal que ele não cessava de contar.” BOLLON, Patrice, Cioran, l’hérétique. Paris: Gallimard, 1997, pp.  274-275.

[106] Ibid., pp. 276-277.

[107] Ibid., pp. 277-278.