A aventura da interpretação: uma polifonia “cioranesca” | Prefácio | PDF

Cioran, um aventureiro imóvel reúne 30 entrevistas ou conversações sobre a obra desse que se declarou um “secretário das suas sensações”, um “pensador orgânico” para quem a vida – “essa grande Desconhecida” – sempre foi a matéria-prima da reflexão filosófica e da criação literária. São intercâmbios “cioranianos”, diálogos filosóficos e literários mantidos por Ciprian Vălcan ao longo de anos, no melhor espírito cosmopolita. São apresentadas aqui 30 vozes, algumas consonantes, outras dissonantes, 30 logoi que giram em torno de um interesse (e uma paixão) em comum: o filósofo, o pensador, o escritor, o caso, o enigma, o paradoxo ambulante, o compatriota expatriado, o ilustre estrangeiro, o amigo, o homem de carne e osso que nasceu em Răşinari, em 1911, e faleceu em Paris, em 1995 – Cioran.

Cioran, um aventureiro imóvel vem somar-se à fortuna crítica dos estudos cioranianos em língua portuguesa. Para além da crítica especializada, também é uma leitura indicada para o grande público que deseja conhecer mais sobre este autor romeno de expressão francesa. O livro de Vălcan é um valioso aporte crítico-hermenêutico tanto para a pesquisadora acadêmica como para o leitor sem nenhuma formação filosófica. Em termos propedêuticos, os 30 pontos de vistas sobre Cioran compilados aqui são iluminadores em si mesmos e pela constelação hermenêutica que formam em conjunto, confirmando a observação de Marta Petreu de que “os grandes autores guardam uma riqueza escondida que só a complementaridade das interpretações traz à luz.”

A biógrafa resume bem a que se propõe este livro de Vălcan: dar uma visão geral, por aproximações e variações de perspectiva, uma espécie de “retrato falado”, esboçado polifonicamente por um coro de 30 vozes, do autor de livros como Nos cumes do desespero, Breviário de decomposição e Silogismos da amargura. Vălcan recolhe impressões, insights, memórias, anedotas, críticas e interpretações as mais variadas – às vezes inusitadas. Como um detetive cioranesco, formula um punhado de perguntas-chave e justapõe uma série de depoimentos que – pela dialética entre consonância e dissonância, convergência e divergência – engendram uma imagem paradoxal, o perfil de um autor sem um perfil definido, a identidade de um homem sem identidade (“um estrangeiro para a polícia, para Deus, para mim mesmo”).

A querela das interpretações

Como Nietzsche, Cioran é um pensador de muitas peles – ou “máscaras”[1] (tantas quanto exigem as suas solidões). “Nietzsche é uma soma de atitudes, e é rebaixá-lo procurar nele uma vontade de ordem, uma preocupação de unidade”, diz Cioran em A tentação de existir, fazendo uma autoconfissão indireta – por um détour em Nietzsche. Essa natureza fragmentária e polifônica, proteiforme e insólita, titânica e temerária, nos coloca um tremendo desafio hermenêutico. Aqui, nos deparamos com a questão das condições de possibilidade e dos limites da interpretação de uma obra que parece admitir todas as interpretações e, ao mesmo, rejeitá-las uma a uma. Há algo de não-interpretável na obra de Cioran, assim como na de Nietzsche: uma singularidade irredutível, indefinível, derivada da relação entre temperamento e estilo.[2]

Dito isso, nenhuma unidade subjacente às interpretações propostas pelas 30 personalidades entrevistadas por Vălcan. A multiplicidade de perspectivas suscitadas por um mesmo autor, uma mesma obra, poderia ter como o seu corolário: dois leitores de Cioran, três interpretações da sua obra. Neste sentido, a polifonia das interpretações é um reflexo da polifonia discursiva da própria “obra” – magistral désœuvrement – em questão: uma “obra” sumamente fragmentária, como uma “escritura do desastre” (Blanchot), sincopada e assistemática, como a existência mesma. Cioran anota nos seus Cahiers: “Sobre todas as coisas, eu tenho pelo menos dois pontos de vista divergentes. De onde a minha indecisão teórica e prática.”[3] Essa “indecisão”, contagiante, não falha em manifestar-se na exegese cioraniana. Como sustentar uma interpretação simples, única e definitiva, de um pensador que não tinha um ponto de vista simples, único e definitivo sobre nada?

O método Vălcan

Salvo exceções, quase todas as entrevistas são compostas das mesmas perguntas. São perguntas protocolares que Vălcan considera fundamentais a se fazer a qualquer interlocutor em diálogo sobre Cioran. A repetição tem a função de reforçar o contraste de convergências e divergências hermenêuticas entre os 30 entrevistados, estabelecendo eixos temáticos ao longo dos quais as interpretações se aproximam ou se distanciam. Cada uma das perguntas foi minuciosamente pensada e escolhida. Cada uma delas tem a sua pertinência, seja pela generalidade, seja pela inquirição minuciosa de índole crítica, hermenêutica ou epistemológica. 

Vălcan quer saber como e quando os seus interlocutores tiveram um primeiro contato a obra de Cioran. É que a primeira leitura costuma ser impactante, por vezes dividindo a existência do leitor entre antes e depois de Cioran. “Revelação”, “epifania”, “choque”, “experiência-limite” transformadora e inesquecível. Fala-se das circunstâncias da descoberta, do primeiro livro, do efeito produzido, de como – em alguns casos – essa “obra” vertiginosa foi capaz de produzir uma profunda reviravolta nas suas vidas. Esta curiosidade em particular tem uma significação especial no caso do(a)s compatriotas de Cioran: tendo perdido a cidadania romena e censurado pelo regime comunista romeno recém-estabelecido, os seus livros só puderam voltar a circular livremente, e só passaram a ser devidamente reeditados, após a queda de Ceauşescu e do Muro de Berlim, ao final de 1989.[4]

O interesse de Vălcan sobre os aspectos da “obra” que nos atraem de início, paralelamente aos que viemos a considerar relevantes após anos de frequentação e familiarização com o texto, subentende o fato de que a “obra” em questão é como o rio de Heráclito: nunca idêntica a si mesma, sempre movente, em devir, de modo que a experiência de leitura assume, ela mesma, um caráter fluido, dinâmico, (co)movente. Ler Cioran é a experiência vertiginosa da ausência de fundamento, fixidez e solidez de todas as coisas – a começar pelas palavras, essas “sombras de realidade”, sem as quais, não obstante, cairíamos na idiotia ou cometeríamos suicídio… A sua “obra” nos revela o paradoxo de uma identidade que se afirma por negação e apagamento (effacement) de si. “Nós não somos realmente nós mesmos senão quando, colocados diante de si, já não coincidimos com nada, nem sequer com a nossa singularidade”.[5] Assim fala o antropólogo dos Cárpatos, e essa antropologia é inseparável da sua poética, dessa sua “demiurgia verbal” de ares gnósticos.

A pergunta comparatista, tendo em vista o estilo e os temas de reflexão, pretende sondar cada interlocutor em busca de afinidades, cumplicidades, similitudes, aproximações e diálogos possíveis entre Cioran e outros nomes do universo intelectual europeu do século 20. Ela sugere duas coisas: primeiro, que o estilo e o teor da “obra” de Cioran são inseparáveis, como  “unha e carne”; segundo, que os paralelismos podem se basear em uma das variáveis, nas duas, ou em nenhuma – há quem negue toda possibilidade de comparação. É interessante, neste ponto, que o razoável para uma intérprete pode ser impensável para o outro. Aqui, uma vez mais, entra em jogo a questão da singularidade, da originalidade, que pode levar ao clichê (no fundo preguiçoso) de que Cioran (ou qualquer outro autor) é simplesmente “incomparável”. Como observa justamente Vincent Piednoir, Cioran está entre os maiores “não por ser parecido a eles, mas por ser radicalmente diferente”. É daí que deriva a grandeza, a singularidade, o dom de exprimir o inefável, de elevar o que é único e muito particular ao plano do universal.

Outra pergunta recorrente tem a ver com a relação histórico-filosófica entre Cioran e Nietzsche. Tendo em vista a inevitável (e muitas vezes precipitada) comparação entre os dois, é importante saber o que cada um pensa sobre essa relação, que poderia ser descrita, a partir de Harold Bloom, como um caso de “angústia da influência”. Pergunta “sintomática”, que serve de bússola, índice hermenêutico da constelação intelectual de Cioran, bem como daquilo que o distingue, no que ele possui de único, em meio a ela. Ela diz muito não apenas sobre o nosso autor, sobre as influências que incidem sobre a sua formação intelectual, mas também sobre Nietzsche em particular, cujo titanismo é exaltado pelo próprio Cioran – a sua grandeza tresloucada, a sua genialidade temerária.[6] Aqui, como em outras perguntas, as divergências interpretativas se mostram mais salientes. Mas, controvérsias à parte, é inegável – e aqui reside a pertinência da pergunta sobre Nietzsche – que haja certo parentesco, certa cumplicidade fisiológica e temperamental entre os dois pensadores. Como observa uma vez mais Vincent Piednoir, “ambos rejeitam a ideia de sistema, exploram o caminho do fragmento, introduzem o humor e a psicologia no cerne do pensamento, opõem-se ao racionalismo ocidental, têm uma profunda paixão pela música…”

Caleidoscópio “cioranesco”

Os entrevistados de Ciprian Vălcan são intelectuais dos mais diversos backgrounds, como se diz em inglês, personalidades proeminentes nas suas respectivas áreas, algumas das quais célebres nos seus países por conta das contribuições que fizeram às suas culturas. São biógrafos, tradutores, editores, professoras universitárias e pesquisadores das mais variadas especializações, escritores, poetas, amigos ou leitoras que se corresponderam com Cioran, e que tiveram, eventualmente, o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, na sua mítica mansarda na Rue L’Odéon, 21, em Paris.

Cioran, um aventureiro imóvel dá a conhecer uma ampla e heterogênea rede internacional de “cioranólogos” e “cioranólogas” (para empregar um termo de Marta Petreu). São intelectuais de países como França (6), Romênia (4), Itália (4), Brasil (4), Hungria (1), Espanha (1), Portugal (1), Holanda (1), Grécia (1), Colômbia (1), Tunísia (1), Israel (1), Canadá (1) e Polônia (1).

Esta edição de Cioran, un aventurier nemişcat, pela primeira vez em língua portuguesa, vem com notas de rodapé elucidativas, sempre que necessárias a título de contextualização (sobretudo de personalidades da cultura romena e de certos termos da língua romena), além de notas com as referências completas de aforismos e passagens da obra de Cioran citados pelos 30 entrevistados.[7] Ao final, a leitora encontrará uma cronologia da vida de Cioran, seguida de um índice bibliográfico.

Uma vez que a edição original de Cioran, um aventureiro imóvel foi publicada em 2015, na Romênia, e que muitas das entrevistas datam de muito antes do ano da sua publicação, algumas das biografias introdutórias foram atualizadas para esta edição. Três dos entrevistados, por exemplo, já não estão entre nós: a professora Liliana Herrera, o nosso farol sul-americano nos estudos cioranianos, nos deixou em 20 de setembro de 2019. Roland Jaccard faleceria na mesma data, dois anos depois: cometeu suicídio dois dias antes de completar 80 anos. Por fim, outra grande perda é a de Mario Andrea Rigoni, amigo de Cioran que desempenhou um papel crucial para a sua difusão no mundo cultural italiano. O grande especialista em Leopardi nos deixou em 15 de outubro de 2021, após lutar longamente contra uma grave doença. Cioran, um aventureiro imóvel vai dedicado às suas memórias.

Curiosidade: “Aventureiro imóvel”, a fórmula paradoxal que dá título ao livro, é uma caracterização que Cioran faz de Jorge Luis Borges no perfil do escritor argentino contido em Exercícios de admiração. Como muitas outras representações que Cioran faz dos autores que lhe interessam, esta lhe cai como uma luva.

Sobre o autor

Nascido em Arad, em 1973, Ciprian Vălcan é um filósofo, ensaísta e professor universitário romeno. Doutorou-se na École Pratique des Hautes Études (2000-2006). Da sua tese de doutorado, orientada por Jacques Le Rider (um dos entrevistados), resultou La concurrence des influences françaises et allemandes dans l’oeuvre de Cioran (Institutul Cultural Român, 2008), livro que se tornou uma referência fundamental para quem deseja empreender estudos acadêmicos sobre Cioran.[8]

Para além dos estudos cioranianos, Vălcan possui uma obra autoral e original que começa a ser descoberta por nós, em língua portuguesa.[9] É o autor de dezenas de volumes de aforismos, ensaios e memórias, traduzidos e publicados nos mais diversos países, na Europa e nas Américas, inclusive no Brasil.[10] Os primeiros aforismos de Vălcan em português apareceram na revista (n.t.), traduzidos por Fernando Klabin.[11]

Rodrigo Inácio R. Sá Menezes
Janeiro de 2023

Cioran, um aventureiro imóvel (30entrevistas)
Ciprian Vălcan
Tradução, prefácio, notas e cronologia: Rodrigo Inácio R. Sá Menezes
Formato: E-book (PDF)
210 páginas
Ano: 2023

ISBN: 978-65-85286-00-8


NOTAS:

[1] Em “O estilo como aventura”, Cioran afirma que o estilo é, ao mesmo tempo, “uma confissão e uma máscara”. CIORAN, E. M., A tentação de existir. Trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’Água, 1988, p. 104.

[2] “Se existe uma relação entre o ritmo fisiológico e a maneira de escrever de um escritor, por maioria de razão existirá uma relação entre o seu universo temporal e o seu estilo.” Ibid., p. 103.

[3] CIORAN, E. M., Cahiers: 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997, p. 137.

[4] Um artigo de Stelian Tănase, “Cioran vigiado pela Securitate”, publicado no Cahier de l’Herne Cioran, descreve como o “exilado metafísico” e muitos romenos no exílio eram permanentemente vigiados por espiões da polícia secreta do regime comunista romeno (a Securitate era como a KGB romena), que registravam cada detalhe das suas vidas no estrangeiro.

[5] CIORAN, La Chute dans le temps, in Œuvres. Paris: Gallimard (coll. « Quarto »), 1995, p. 1071.

[6] “Nenhum sistema filosófico me deu o sentimento de um mundo independente de tudo o que não é ele. É doloroso, mas é assim: podeis ler todos os filósofos que quereis, nunca sentireis que vos tornastes um outro homem. Naturalmente, dentre os filósofos excluo Nietzsche, que é muito mais que um filósofo. […] A presença do paraíso em Bach corresponde à sua ausência total em Beethoven. Isso significa que este último seja irreligioso? Beethoven é religioso pela tensão infinita que caracteriza seu trabalho de criador, exatamente como Nietzsche, cujo titanismo é de essência religiosa.” CIORAN, O Livro das ilusões. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 164, 203-204.

[7] Para as citações dos livros de Cioran disponíveis em língua portuguesa, seja no Brasil (Nos cumes do desespero, O Livro das ilusões, Breviário de decomposição, Silogismos da amargura, História e utopia, Exercícios de admiração, Sobre a França), seja em Portugal (A tentação de existir e Do inconveniente de ter nascido), adotaremos as traduções já existentes. Para as demais citações (tanto do romeno quanto do francês), traduzimos diretamente dos originais (editados pela Humanitas na Romênia e pela Gallimard na França).

[8] O livro foi traduzido para o espanhol por Liliana Herrera (1960-2019) e publicado na Colômbia (UTP): Influencias culturales francesas y alemanas en la obra de Cioran (Editorial UTP, 2016).

[9] Cf. VĂLCAN, Ciprian, O suicida ou a era do niilismo. Trad. de Fernando Klabin. Copenhague/Rio de Janeiro, 2016.

[10] Tive a alegria de traduzir, recentemente, dois deles: As velhinhas e o diabo, um volume de aforismos (bilingue), e Obsidiana, uma coletânea de ensaios (ambos pela editora Tesseractum).

[11] VĂLCAN, Ciprian. Amiel e o canibal. Trad. Fernando Klabin. In: Revista (n.t.) Nota do Tradutor, nº 8, vol. 1, mar. 2014, pp. 206-245.

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