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Sanctus Januarius: 3 aforismos de Nietzsche para o Ano Novo
Segundo o filósofo trágico francês Clément Rosset (1939-2018), os três primeiros aforismos do livro IV da Gaia Ciência – livro com o subtítulo Sanctus Januarius, “São Januário”, e escrito durante um inverno eufórico em Gênova – dão uma ideia bastante precisa e bastante complexa do que é a beatitude (Seligkeit) em Nietzsche.
O primeiro deles, intitulado “Para o Ano Novo”, é composto na forma de um “voto de ano novo contendo instruções intelectuais válidas para todos os anos por vir e para tudo o que seu autor, que também é seu destinatário, será suscetível de pensar em seguida.”
O segundo aforismo, intitulado “Providência pessoal”, consiste, segundo Rosset, na “radicalização das teses otimistas de Leibniz”, com a diferença crucial de que, “enquanto Leibniz atribui a Deus a organização da providência geral, Nietzsche atribui ao ‘acaso’, concebido como princípio ateísta, ou melhor, como antiprincípio, o mérito dessa providência pessoal que vela pela sorte de cada um em particular.”
O terceiro aforismo, por fim, intitulado “O pensamento da morte”, é uma reversão de perspectiva em relação à filosofia tradicional, para a qual o pensamento da morte é tal que “envenena”, irremediavelmente, o pensamento da vida. Por isso, conclui Rosset, na pista de Nietzsche, “as pessoas se contentam em viver sem pensar demais nele”.
Fonte: Clément Rosset, Alegria: a força maior. Trad. de Eloísa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 36-40.
SANCTUS JANUARIUS
Nietzsche
Ó tu, que com dardo de flama
Gênova, janeiro de 1882.
Partes o gelo da minha alma,
Para que ela se lance fremente
Ao mar de sua suprema esperança:
Sempre mais clara e mais sã,
Livre na lei mais amorosa —
Assim exalta ela teus milagres,
Belíssimo Janeiro!
276. Para o Ano-Novo. — Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho de viver, pois ainda tenho de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum [Eu sou, portanto penso: eu penso, portanto sou]. Hoje, cada um se permite expressar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração — que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: — assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!
277. Providência pessoal. — Existe, na vida, um certo ponto alto: ao atingi-lo corremos novamente, com toda a nossa liberdade, e por mais que tenhamos negado ao belo caos da existência toda razão boa e solícita, o grande perigo da servidão espiritual, e temos ainda a nossa mais dura prova a prestar. Pois é então que para nós se apresenta, com a mais insistente energia, a ideia de uma providência pessoal, tendo a seu favor o melhor advogado, a evidência, é então que vemos com nossos olhos que todas, todas as coisas que nos sucedem resultam constantemente no melhor possível. A vida de cada dia e cada hora parece não querer mais do que demonstrar sempre de novo essa tese; seja o que for, tempo bom ou ruim, a perda de um amigo, uma doença, uma calúnia, a carta que não chegou, a torção de um pé, a olhada numa loja, um argumento contrário, o ato de abrir um livro, um sonho, uma trapaça: imediatamente ou pouco depois tudo se revela como algo que “tinha de acontecer” — é algo de profundo sentido e utilidade justamente para nós! Haverá mais perigosa tentação a renunciar à fé nos deuses de Epicuro, esses indiferentes desconhecidos, e crer em alguma divindade zelosa e mesquinha, que conhece todo fio de cabelo de nossa cabeça e não repugna prestar os mais miseráveis serviços? Ora — quero dizer, apesar de tudo isso! —, vamos deixar em paz os deuses e também os prestativos gênios e satisfazer-nos com a suposição de que nossa própria habilidade prática e teórica em interpretar e arrumar os acontecimentos tenha atingido seu ponto alto. Tampouco vamos ter em bem alta conta essa destreza de nossa sabedoria, se por vezes nos surpreender muito a maravilhosa harmonia que surge de nosso instrumento: uma harmonia que soa bem demais para que ousemos atribuí-la a nós mesmos. De fato, aqui e ali alguém toca conosco — o querido acaso: ele eventualmente guia a nossa mão, e a mais sábia providência não poderia conceber música mais bela do que a que então consegue esta nossa tola mão.
278. O pensamento da morte. — Em mim me produz uma melancólica felicidade viver nessa profusão de vielas, de necessidades, de vozes: quanta fruição, quanta impaciência e cobiça, quanta sede e embriaguez de vida não se manifestam aí a cada instante! Mas logo haverá tanto silêncio para todos esses viventes ruidosos e sequiosos de vida! Como atrás de cada um está sua sombra, sua obscura companheira de viagem! É sempre como no último minuto antes da partida do navio de emigrantes: as pessoas têm mais a se dizer do que nunca, a hora urge, o oceano e sua desolada mudez esperam impacientes por trás de todo o ruído — tão cobiçosos e seguros de sua presa. E todos, todos acham que o Até-então foi pouco, muito pouco, e o futuro iminente será tudo: daí toda a pressa, a gritaria, o atordoar-se e avantajar-se! Cada um quer ser o primeiro nesse futuro — mas a morte e seu silêncio são a única coisa certa e comum a todos nesse futuro! Estranho que essa única certeza e elemento comum quase não influa sobre os homens e que nada esteja mais distante deles do que se sentirem irmãos na morte! Fico feliz em ver que os homens não querem ter o pensamento da morte! Eu bem gostaria de fazer algo para lhes tornar o pensamento da vida mil vezes mais digno de ser pensado.
NIETZSCHE, Friedrich, Gaia Ciência, livro VI. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.